Crítica
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Sinopse
Depois que uma jovem desaparece, chocando uma pequena comunidade do sul do Brasil, a tradicional festa local, chamada de Ivana Kupala, é banida do calendário da cidade. Trinta anos mais tarde, a celebração está prestes a ser revivida, mas coisas estranhas começam a acontecer.
Crítica
É uma grata surpresa se deparar com Desalma, a primeira das séries originais da Globoplay a fugir dos esquemas mais tradicionais perseguidos pelas telenovelas da emissora: comédias românticas (Todas as Mulheres do Mundo, 2020, ou Shippados, 2019), dramas sociais (Segunda Chamada, 2019, ou Aruanas, 2019), ou thrillers policiais (Arcanjo Renegado, 2020, ou A Divisão, 2019). Desde que lançou a plataforma própria de streaming, a Globo tem investido na produção de conteúdo próprio. Nada mais natural, portanto, que fizesse uso do mesmo conhecimento e experiência acumulados durante décadas com seu produto de maior sucesso. Mas ir além do óbvio é não apenas saudável, como também estimulante. Pois é o que se percebe no programa criado por Ana Paula Maia, que é eficiente em combinar estes elementos mais esperados – há romance, traição, investigações e segredos por todos os lados – como também introduz outros elementos capazes de atrair a atenção de um público mais amplo, como mistérios familiares e assombrações sobrenaturais. Um conjunto que poderia resvalar tanto no exagero quanto no equívoco, mas que resulta harmônico justamente pelos talentos escolhidos para defender tais argumentos em cena.
Ana Paula Maia é uma escritora consagrada, autora de livros como A Guerra dos Bastardos (2007) e Enterre Seus Mortos (2018). Uma crítica comum aos seus trabalhos era o fato dela, apesar de mulher, ter como costume contar com personagens masculinos como protagonistas de suas tramas. Em sua primeira experiência com o audiovisual, no roteiro do drama Deserto (2017), escrito em parceria com o ator e diretor Guilherme Weber, ela já ensaiava uma mudança de ponto de vista, ao desenhar figuras femininas marcantes em meio a uma trupe circense esquecida pelo tempo. Pois em Desalma ela dá um passo adiante, estruturando sua história ao redor de três (ou quatro) mulheres absolutamente poderosas e centralizadoras: Haia (Cássia Kis, em perfeita composição), a velha feiticeira, que tudo sabe e de nada tem pressa; Ignes (Claudia Abreu, transitando de forma um tanto descuidada pelos limites do exagero), aquela em desespero por estar a par dos perigos que os cercam, apesar de ignorar a melhor maneira de enfrentá-los; e Giovana (Maria Ribeiro, entregando o que lhe compete, o que felizmente está de acordo com o esperado pelo enredo), a forasteira recém-chegada que acaba servindo de condução ao espectador – as descobertas dela também serão as dos curiosos do lado de cá da telinha.
A quarta personalidade, se for possível ir adiante, poderia ser Halyna (a revelação Anna Melo), filha de Haia e morta misteriosamente há trinta anos. Quer dizer, seu assassinato nem foi tão nebuloso assim: Aleksey (Nicolas Vargas, de O Ninho, 2016), que se declarava apaixonado por ela, confessou o crime e ficou por anos atrás das grades, até ser solto e, infeliz coincidência do destino (será?), morrer atropelado em um acidente dias depois. Esse episódio é que irá deflagrar as ações verificadas após três décadas, quando Giovana chega à cidade de Brígida, no sul do país. Região de forte colonização ucraniana, é também um lugar que se esforça para preservar algumas das suas mais caras tradições, como a festa de Ivana Kupala. E se foi nessa mesma data que a garota perdeu a vida, em 1988, qual a razão dos eventos ocorridos somente em 2018 estarem tão conectados a esse incidente? O desenrolar dessas duas linhas narrativas, separadas pelo intervalo de quase meio século, se dá de forma orgânica, revelando uma compreensão necessária do formato assumido.
Se há esse nítido avanço em sua estrutura, os diretores também não conseguem evitar que alguns cacoetes ‘novelísticos’, por assim dizer, acabem vez por outra se manifestando. João Paulo Jabur (Salve Jorge, 2012, e Novo Mundo, 2017), Carlos Manga Jr. (Vamp, 1991, e Se Eu Fechar os Olhos Agora, 2018) e Pablo Müller (que atua como diretor assistente na Rede Globo desde 2010) não desprezam seus históricos. O trio revela, ao mesmo tempo, uma excelência técnica impressionante – a fotografia é um dos pontos altos da obra, desde as externas, que servem para transpor o espectador para um lugar mágico e instigante, como as internas, que colaboram decisivamente na construção de uma ambientação claustrofóbica e opressora, da mesma forma como a trilha sonora, disposta a tirar a audiência de um lugar de conforto com bastante propriedade – mas, também, certos deslizes expositivos, como diálogos reiterativos, explicações desnecessárias (que as imagens já haviam se encarregado de expor) e o apontamento a becos sem saída que até podem funcionar em um conjunto mais longo – como as novelas, por exemplo – mas que, em apenas dez episódios, se mostram irrelevantes.
Roman (Nikolas Antunes agora, Eduardo Borelli antes), após tantos anos longe de sua cidade natal, decidiu voltar apenas para se matar na cachoeira mais próxima. Isso leva a esposa, Giovana, a deixar São Paulo, acompanhada pelas duas filhas, e ir até lá para tentar descobrir o que teria acontecido com o ele. Mas havia muito o que escondia dela. Como a ligação com Bóris (Ismael Caneppele / Lucas Soares), um dos seus melhores amigos que hoje é sócio de Ivan (Bruce Gomlevsky / Giovanni Gallo) em um dos maiores criadouros de porcos da região, ou mesmo a relação com Halyna – e os motivos que o levaram a procurar por Haia pouco antes de ter se suicidado, justo ela, a mulher que mais poderia querer o seu mal – e, também, a única capaz de ajudá-lo. Bóris, por sua vez, tem os próprios problemas com os quais lidar, como a preocupação crescente da esposa – Ignes, prima de Roman – que não consegue explicar o comportamento errático do filho pequeno do casal. Enquanto isso, se desenrola em paralelo enlaces românticos entre estes mesmos quando jovens, da mesma forma como vai nascendo o sentimento de revolta e vingança de Haia contra o povo da cidade. Afinal, por quanto tempo conseguirá aguentar calada as injustiças destinadas a ela – e a sua família?
Mulheres determinadas e dispostas a tudo pelos seus são a marca de Desalma. Haia sabe quem de fato matou sua filha – e também a quem culpar pelo falecimento do marido, ainda anos antes – mas também reconhece que há tempo para tudo, inclusive para um eventual acerto de contas. Ignes, que quando jovem parecia resignada ao papel de mera observadora, se vê levada ao centro de um drama que nunca pediu, mas que não hesitará em mover mundos e fundos para conseguir superá-lo – mesmo que, para isso, tenha que enfrentar uma resistência até dentro de sua própria casa. E Giovana, se no começo dava a entender não ter nada a perder, aos poucos vai encontrando seu lugar nesse quebra-cabeça, o que a leva a perceber que, ao chegar tão tarde em uma história que começou a se desenrolar trinta anos antes, tudo o que lhe resta é lutar para preservar o que agora tem em mãos. Por fim, Halyna é a maior vítima – da sociedade, do preconceito, da homofobia, da misoginia, da xenofobia, da ignorância. Mas resta um espaço a ser ocupado nesse cenário, e aqueles que por ela rezam têm consciência disso. Sua hora irá chegar. E uma segunda temporada será muito mais do que bem-vinda.
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