Crítica


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Sinopse

Depois de passar a noite com um homem bem mais jovem, Alma se depara com uma situação que coloca em risco a integridade de sua família. O caso extraconjugal fortuito ameaça botar a sua vida de cabeça para baixo.

Crítica

À primeira vista, Desejo Sombrio surfa no sucesso de suspenses eróticos recentes como a saga Cinquenta Tons de Cinza (2015 - 2018) e o filme 365 Dias (2020). Os cinco primeiros episódios são focados no encontro entre Alma (Maite Perroni) e o jovem Darío (Alejandro Speitzer) durante uma festa. Ela reluta, porém sucumbe aos charmes do garoto e se entrega a dias e noites de sexo voraz, com direito a objetos empurrados ao chão para permitirem a transa sobre a mesa, um cinto caindo sedutoramente, muita trilha sonora pop sussurrante acompanhando o ato em câmera lenta. O imaginário não-pornográfico do sexo tem dependido dos champanhes, da música envolvente, dos corpos perfeitos dele e dela para representarem uma idealização do desejo. No entanto, a série mexicana sai na frente no que diz respeito ao posicionamento dos personagens: Alma não está presa ao rapaz, nem por um sequestro (caso de 365 Dias), nem por um contrato literalmente firmado entre as partes (caso de 50 Tons de Cinza). Ela é uma mulher mais velha, livre de suas escolhas. O dilema se encontra na esfera moral: sendo casada, deveria sucumbir à tentação? Teria direito de responder aos desejos de seu corpo, ou seria eticamente errado infringir os votos do matrimônio?

Para um país fervorosamente católico como o México, o dilema sobre a resistência dos ideais cristãos em plena contemporaneidade líquida se mostra pertinente, e de fácil identificação ao Brasil igualmente conservador. Por que a infidelidade de Leonardo (Jorge Poza), marido de Alma, é aceita com tanta facilidade socialmente enquanto a esposa é tratada como vadia por seu caso? Criado por uma mulher, o projeto faz questão de transformar a protagonista numa professora universitária respeitada, cuja especialidade constitui precisamente os estudos sobre a violência contra a mulher. O roteiro passa longe de qualquer militantismo, e enfrenta um sem-número de contradições nesta configuração, quando Alma se converte numa figura ingênua em relação ao amor, mas frisa que estamos diante de uma mulher progressista e esclarecida, ao invés da Poliana apaixonada de Cinquenta Tons ou a vítima de Síndrome de Estocolmo de 365 Dias. No entanto, o conteúdo parece magro para sustentar 18 episódios da extensa temporada inicial. Conforme as cenas de sexo entre Alma e Darío se multiplicam, elas também se tornam repetitivas pelas restrições autoimpostas pela direção e montagem (não se pode mostrar muita nudez, o sexo deve ficar limitado a duas posições básicas, nada de sexo oral etc.). Como não esvaziar o erotismo e sustentar uma trama mais ampla?

A primeira resposta consiste em levar o sexo para a esfera dos sonhos e pesadelos. A partir do sexto episódio, a investigação criminal a respeito da morte de Brenda (María Fernanda Yepes) domina a narrativa, enquanto o romance extraconjugal é deixado em segundo plano. Assim, cabe aos personagens se lembrarem do sexo praticado, imaginarem o sexo que gostariam de praticar ou temerem pela realização sexual de terceiros. Desejo Sombrio depende enormemente de flashbacks sem qualquer forma de demarcação estética em relação à realidade, para sustentarem a verossimilhança do erotismo. Muitos personagens acordam de seus sonhos noturnos ou devaneios diurnos para descobrirem que a intensa transa ocorreu apenas em suas cabeças. Enquanto isso, o roteiro explora a possibilidade de cruzamentos entre todos os seus personagens adultos, que fazem sexo uns com os outros, ou então o sonham. A moral da história aponta que todos traem, inclusive com parentes e próximos, porque o desejo seria incontrolável. A conclusão frisa o caráter vitimário dos personagens, sejam eles bons ou perversos, porque foram movidos por suas pulsões. A única garantia dentro de um relacionamento, segundo a série, seria a infidelidade.

Quando o projeto se converte num suspense policial, ele se assegura que todos os personagens familiares estejam diretamente implicados no crime de relevância nacional. Não é incomum que séries efetuem estes atalhos de roteiro para ampliar a tensão: por acaso, o juiz de um importante caso é o marido de Alma, o legista responsável pelo caso foi o cunhado, o sedutor Darío teria implicações no crime cometido há décadas e assim por diante. Por mais artificiais e convenientes que sejam estes laços, eles permitem que a temporada jamais dissocie vida privada e vida pública. Alma trabalha com abuso físico e psicológico de mulheres, do qual será vítima. Leonardo é conhecido como o maior juiz especializado em casos de feminicídio, crime de que será acusado mais tarde. Por causa da análise de cadáveres, o cunhado Estéban (Erik Hayser) conhece técnicas para cometer assassinatos sem deixar traços, algo que virá a calhar adiante. Os personagens constituem elementos úteis e indispensáveis para o andamento do suspense, o que serve tanto para afastá-los do realismo (afinal, estamos dentro da esfera do fetiche) quanto para garantir a convivência forçada entre eles. Chega a ser curiosa a maneira como estas pessoas que se odeiam continuam se vendo, dia após dia. Uma trama naturalista os afastaria, mas aqui o indesejado Darío aparece a todo momento no canto das casas e hospitais, os casais descontentes continuam dormindo lado a lado, a filha irritada a mãe continua tomando café da manhã com ela. Em nome da tensão, sacrifica-se parte da lógica.

Psicologicamente, a série adota a ideia de que os crimes e infidelidades constituem consequências diretas de traumas na infância. O cinema sempre recorreu aos traumas para justificar ações de causa e consequência: Darío possui feridas consideráveis com a mãe, o que justificaria a atitude predatória mais tarde. A filha Zoé (Regina Pavón) guarda lembranças dolorosas de uma noite de Natal, algo que carrega para a vida adulta. Everybody hurts, sugere a série: todos têm dores, todos estão machucados. O problema surge quanto esta associação passa a legitimar os crimes, ao invés de nos permitir questioná-los. Após um relacionamento tóxico e violento entre Alma e Darío, o roteiro ainda insiste que esta foi uma bela história de amor (devido ao vídeo choroso dele), algo problemático para um projeto que pretende defender a liberdade feminina e a equivalência de direito entre os sexos. Como de costume, a personagem feminina de maior apetite sexual será aquela sacrificada por sua recusa a se casar e manter relacionamentos monogâmicos. A morte de Brenda, a mulher que dorme com todos e os abandona na manhã seguinte, estará diretamente associada ao seu comportamento sexual, enquanto mulheres casadas recebem o benefício do perdão. Outra personagem se descobre lésbica após fazer sexo sem prazer com um homem. A homossexualidade seria decorrente da frustração sexual, em outras palavras, a lésbica seria a mulher que ainda não encontrou o homem certo? De aparência progressista, Desejo Sombrio comete deslizes graves no processo de normalização da heteronormatividade.

Enquanto trabalha com símbolos do erotismo e da obsessão, o resultado se torna tão arriscado quanto frágil. Cada vez que busca tornar a história ainda mais sombria do que seria natural às múltiplas traições e aos cadáveres se multiplicando, o resultado se compromete. A cena com Darío escrevendo “Perdão Alma” múltiplas vezes num caderno soa absurda; a luta de Zoé com uma espada de samurai beira o humor involuntário; a descoberta de um lençol de piquenique manchado de sangue, para simbolizar a perda da virgindade, remete à instrumentalização do sexo. Uma luta entre irmãos, com uma arma apontada para o outro, se torna uma briga frenética entre ambos após um simples corte de montagem. A história poderia ser menos rocambolesca, e também mais digna de crença, caso acreditasse no potencial inerente de sua premissa, sem acrescentar tantos ornamentos e ganchos no final de cada episódio. Ao menos, um mérito da extensa trama consiste na reorganização do jogo de gato e rato: aos poucos, os protagonistas se transformam. Aqueles que acreditávamos serem cúmplices se tornam adversários, e vice-versa. Nesta trajetória de manipulações, todos enganam e são enganados, sem maniqueísmos. Alma nunca será apenas uma pobre iludida, enquanto Darío, Leonardo e Estebán terão seus momentos de vilania.

Isso não impede que, rumo ao final, a professora universitária seja deixada à posição de coadjuvante, parando de ditar os rumos da narrativa. Enquanto o quiproquó policial se desenvolve entre os homens e os crimes do passado, Alma apenas observa e lamenta, durante sete ou oito episódios, os infortúnios ao redor. A partir do momento que Darío passa a se relacionar com Zoé, a história perde significantemente os rumos, e apresenta dificuldades em se recuperar. Passado o primeiro terço erótico, e o segundo terço investigativo, o terço final aposta no melodrama de teor novelesco, com direito a mãe e filha disputando o mesmo homem, irmãos duelando pela mesma mulher, e uma amante fogosa disparando frases como “Eu nunca te amei! Quem eu realmente amo é o seu irmão!”. Desejos Sombrios pena para articular a trama de suspense com a história amorosa, que caminham em paralelo sem necessariamente se retroalimentarem. Na segunda metade, o amor entre Alma e Darío se afasta do caso de suicídio envolvendo o juiz e o legista. Na intenção de fornecer um gancho para a segunda temporada, os instantes finais introduzem uma reviravolta absurda, ressignificando a índole dos personagens uma vez mais. Seria difícil imaginar como a trama prosseguiria após uma guinada tão brusca, mas não podemos duvidar da astúcia da equipe de roteiristas. O romance tóxico entre Alma e Darío dificilmente poderá se sustentar enquanto tal.

De qualquer modo, a produção transparece um nível elegante e profissional, evitando recursos típicos das telenovelas (os tradicionais close-ups, a trilha sonora exagerada, os sacrifícios amorosos) em prol de uma ciranda de amores equivalentes e efêmeros, com direito a cenas de silêncio, admiração e contemplação. Os aspectos técnicos jamais chamam atenção a si mesmos, nem positivamente (as imagens estão desprovidas de qualquer ousadia), nem negativamente (a iluminação é competente, o ritmo possui fluidez, a direção de arte se mostra compatível com o retrato da burguesia intelectual na Cidade do México). O elenco entrega um trabalho uniforme, distante tanto do minimalismo quanto dos exageros típicos do imaginário das telenovelas mexicanas. Maite Perroni se esforça para compor a mulher comum, misturando ingenuidade e sensualidade. Ela obviamente prende os cabelos e coloca óculos quando assume o papel de intelectual respeitável, mas consegue ultrapassar os clichês nos instantes de enfrentamento ao marido. Alejandro Speitzer e Regina Pavón encaram a delicada tarefa de transformarem caricaturas do ímpeto juvenil em figuras complexas, enquanto Erik Hayser reforça as dores na perna, o queixo cerrado e os olhares cruéis para desenhar um homem torturado e soturno. Talvez a única atriz que se destaque de fato seja María Fernanda Yepes, a “vadia” precocemente eliminada da trama. Ela explora a nudez com um naturalismo não fetichizado, tendo a vantagem de ser a única mulher que não precisa cobrir os seios durante uma transa. O enfrentamento político e social mais interessante ocorre através de Brenda, com seu corpo e sua fala descomplexados. Talvez a personagem mais interessante da temporada inicial seja a mulher-fetiche, em torno da qual todos homens testam sua masculinidade, e que se converte rapidamente num fantasma, uma ilusão.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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Bruno Carmelo
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Cecilia Barroso
1
MÉDIA
3