Crítica


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Sinopse

Os órfãos Baudelaire são três irmãos muito inteligentes; Violet é a mais velha, Klaus é o irmão do meio e Sunny é a mais nova, com três anos. Quando seus pais morrem, eles passam a morar com diferentes tutores, e o primeiro é Conde Olaf, que irá tentar roubar a enorme herança deixada pelos pais.

Crítica

Se você não quer ler sobre um seriado que adapta pela segunda vez às telas a obra de Lemony Snicket (heterônimo de Daniel Handler), então talvez seja melhor conferir uma crítica mais agradável. O texto a seguir é recheado de comparações com a versão para o cinema de Desventuras em Série (2004), de análises sobre a representação eficiente do ponto de vista infantil, e de apontamentos acerca de interesses comerciais usados de forma cínica numa narrativa – expressão que aqui quer dizer “talvez os representantes corporativos da Netflix tenham mandado os roteiristas encher linguiça”. Mas, principalmente, se você não quer saber como esse universo caricato habitado pelos órfãos Baudelaire fala sobre o incentivo à leitura e à criatividade, infelizmente os próximos parágrafos serão uma decepção medonha.

A triste história dessa produção começa como a maior parte dos enredos de desastres comerciais de Hollywood, com uma escalação falha de elenco. Os 13 volumes que compõem a série de livros Desventuras em Série têm diversas virtudes, mas o elemento que certamente mais se destaca é o vilão. Nas páginas, o Conde Olaf é um ator falido que, junto com sua trupe, persegue três órfãos herdeiros de uma enorme fortuna. Frio, cruel e maquiavélico, o algoz usa seu (pouco) talento teatral para se disfarçar e tentar tirar as crianças dos inúmeros tutores que têm o azar de acolhê-las sob seu teto. Porém, a veia demasiadamente cômica de Jim Carrey acabou tornando o personagem muito carismático na versão de 2004, que no geral soa mais divertida que macabra – embora dona de méritos técnicos impressionantes. Barry Sonnenfeld, produtor do longa-metragem, assumiu como showrunner do seriado e resolveu escalar um ator mais apropriado ao papel – frase que aqui quer dizer “chamar o Neil Patrick Harris, que consegue ser cômico sem deixar de soar ameaçador e antipático”.

Os ajustes de tom e elenco realmente fizeram da versão seriada dos livros de Lemony Snicket uma adaptação melhor. Um problema, entretanto, permanece: por mais desoladoras e perversas que sejam a situações enfrentadas por Violet (Melina Weissman), Klaus (Louis Hynes) e Sunny (Presley Smith), aquele universo ainda é adorável demais para que realmente venhamos a temer pelo trio – ainda que, por outro lado, é sempre triste constatar que nenhum dos outros personagens está a salvo de um destino melancólico. A boa notícia (se é que podemos nos permitir qualquer otimismo) é que não é, de fato, a tensão e o drama que mantêm a narrativa andando. Já experiente em extrair comicidade do sombrio e macabro em filmes como A Família Addams (1991) e MIB: Homens de Preto (1997), Barry Sonnenfeld (que também dirige alguns episódios) entende melhor a natureza dos livros de Daniel Handler e se entrega de vez ao caricato e o farsesco, não por mero estilismo, mas por compreender que isso representa como as crianças enxergam os adultos e o mundo ao seu redor.

Não é por acaso que os órfãos Baudelaire (desta vez, vividos por atores menos introspectivos e mais carismáticos) sejam as únicas figuras multifacetadas e realmente inteligentes da trama – pois as crianças amadurecem assim, sempre pensando que, naquele momento, já são espertas o bastante. Por isso, os adultos são personagens unidimensionais, caricatos e donos de características marcantes, exatamente como as crianças tendem a enxergar os mais velhos. Além disso, como estamos acostumados a obedecer nossos responsáveis quando somos pequenos, é divertido notar que, aqui, mesmo ordens simples ou raciocínios lógicos duvidosos proferidos por adultos costumam representar uma barreira praticamente física entre os protagonistas e seus objetivos – já que, na cabeça de uma criança, passar por cima do que disse alguém mais velho é quase tão difícil quanto pular um muro de verdade. Além disso, o seriado respeita esse ponto de vista pueril trazido pelos livros, e o usa para fazer escárnio de como abandonamos o questionamento empírico e o pensamento crítico conforme envelhecemos, permitindo que mesmo pessoas muito ruins consigam o que querem por comodismo com o senso comum. Assim, por pior que seja um disfarce do Conde Olaf, este vai passar batido aos outros crescidos se ele usar um crachá dizendo ser outra pessoa – da mesma forma como damos o voto para alguns políticos fascistas e desumanos apenas porque eles usam palavras e expressões como “cidadão de bem”, “Deus” e “família brasileira”. Uma frase que aqui quer dizer “com tanta gente querendo realmente votar no Bolsonaro em 2018, o universo de Desventuras em Série não soa assim tão caricato, afinal de contas”.

Aliás, esta é a mensagem central dos livros de Daniel Handler: exaltar a busca pelo conhecimento e a inventividade – o que é preservado na série. Os “mocinhos” são evidenciados não apenas por sua compaixão, mas pela ligação com bibliotecas e demais especialidades que exigem estudo e pesquisa – isso sem contar que o universo dos órfãos parece sempre remeter à sua bagagem cultural. Não apenas no sobrenome Baudelaire, como em diversas outras ocasiões surgem menções a autores e artistas que exigem conhecimento prévio deles para serem compreendidas justamente de forma a fugir a uma análise pedestre e superficial – e de forma atemporal, pois da mesma forma que eles parecem viver no tempo de Mozart, também há referências a nomes modernos e contemporâneos como James Brown e Haruki Murakami.

Mas se você acha que essa crítica teria um final feliz, essa ideia foi um erro. Isso porque as ressalvas ficaram para o momento derradeiro. Pois, embora a série tenha uma narrativa cativante e divertida, auxiliada pela boa trilha de James Newton Howard (que faz um excelente trabalho, preservando alguns dos bons temas de Thomas Newman para o filme original), o roteiro volta e meia demonstra algumas barrigas, investindo até mesmo num flashback completamente desnecessário nos primeiros episódios, apenas para preencher os minutos exigidos pela duração dos mesmos – algo que o texto ao menos admite num exercício de metalinguagem recorrente (e, às vezes, divertido). Conforme avança a série, esses problemas vão diminuindo, pois são usados dois episódios para adaptar cada livro, e os primeiros originais são mais curtos, então os capítulos finais têm mais história para contar – aliás, a adaptação é feita pelo próprio Daniel Handler.

A conclusão decepcionante que podemos tirar disso é que Desventuras em Série encontrou no seu formato de seriado um veículo funcional – a máxima “o livro é sempre melhor que o filme” é uma bobagem sem tamanho, mas talvez aqui seja bem verdade que a palavra escrita seja a melhor forma de contar a história dos Baudelaire, simplesmente porque é uma história que defende a linguagem escrita. Apesar de, nas telas, essa trama peculiar em sua estranheza ganhar um design de produção fantástico que emula fielmente as ilustrações de Brett Helquist para os livros. E ao contrário do que Lemony Snicket (Patrick Warburton) narra ao espectador o tempo inteiro, trata-se de uma narrativa envolvente e repleta de fofura – também consequência da vestimenta infantil que a série ganha. Portanto, a única tarefa melancólica exigida para assisti-la, é, ao final, ter de esperar pela segunda temporada – uma colocação que aqui quer dizer “descobrir se vamos voltar a acompanhar de forma tão carismática a história dos órfãos Baudelaire e seu divertido vilão”.

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é formado em Produção Audiovisual pela PUCRS, é crítico e comentarista de cinema - e eventualmente escritor, no blog “Classe de Cinema” (classedecinema.blogspot.com.br). Fascinado por História e consumidor voraz de literatura (incluindo HQ’s!), jornalismo, filmes, seriados e arte em geral.
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