Crítica


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Sinopse

Castor de Andrade foi durante muito tempo uma figura sintomática do universo da contravenção no Rio de Janeiro. Bicheiro mais famoso da Cidade Maravilhosa, ele transitava por diversos ambientes, sendo um personagem essencial do futebol e do carnaval carioca no período em que exerceu sua influência enorme.

Crítica

O maior mérito formal de Doutor Castor é jornalístico. A minissérie em quatro episódios dirigidos por Marco Antonio Araujo tem uma quantidade significativa de imagens de arquivo, dados e depoimentos a serviço da leitura da presença/influência pública de Castor de Andrade. Meliante bastante conhecido em áreas proeminentes da sociedade carioca, ele é compreendido como uma figura sintomática das relações promíscuas entre futebol, carnaval e contravenção. Um dos líderes entre os bicheiros então em atividade na cidade do Rio de Janeiro, é tido sobretudo como um articulador dos chamados “banqueiros do bicho” – eufemismo que dava uma demão de legitimidade a uma atividade absolutamente ilegal –, cujas fachadas principais foram as escolas de samba e os clubes de futebol. O primeiro episódio se concentra, basicamente, na atuação do protagonista nos bastidores do Bangu Atlético Clube, agremiação de tamanho modesto, mas que em dois momentos, nos anos 1960 e 1980, por força da patronagem dos Andrade, almejou o lugar destinado aos grandes escudos. São impagáveis as entrevistas com Dé Aranha, Gilmar, Arturzinho e outras personalidades que jogaram no Bangu.

O segundo episódio de Doutor Castor segue investigando a influência de Castor de Andrade no futebol, ampliando o grupo de depoentes que demonstram saudade do patrono magnânimo que distribuía prêmios após cada vitória, mas também a ciência de que aquela generosidade vinha do crime. Ainda que haja esse entendimento, no mais das vezes os ex-jogadores recordam com clara saudade do homem que mudou drasticamente a história do Bangu. Paralelamente, a minissérie dá espaço a pessoas menos comprometidas diretamente com os feitos de Castor, alguns até antagonistas ferrenhos, como policiais encarregados de apertar o cerco contra ele e uma das principais promotoras do movimento em torno do caso que arregimentou a cúpula no bicho como uma quadrilha. Em vários instantes, o programa acaba se repetindo em tom, especialmente ao dar terreno para os ex-boleiros reverenciarem a memória do sujeito que ameaçava árbitros e adversários. Sobressai um caráter folclórico no entendimento geral desse contraventor. A corrupção dentro das quatro linhas ganha elementos mais densos apenas no último episódio, ainda que bastante timidamente.

Quando deslocado do futebol, Doutor Castor lança um olhar não menos contundente à participação de Castor de Andrade no carnaval carioca. Marco Antonio Araujo resgata a importância do protagonista, bem como de seus asseclas e colegas, à criação da Liga Independente das Escolas de Samba do Rio de Janeiro (Liesa). Castor foi patrono da Mocidade Independente de Padre Miguel, com sua generosidade e mão de ferro levando a agremiação a títulos de uma das maiores festas populares do Brasil. A associação entre contravenção, carnaval e futebol revela conexões insuspeitas, mas também deixa à mostra um Brasil completamente diferente, no qual a vista grossa era praticada até mesmo por membros conhecidos da nossa imprensa. Castor aparece no programa de Jô Soares, ali desconversando sobre suas atividades ilícitas, mas obviamente aderindo a um jogo de aparências perfeitamente conhecido por seu entrevistador. Os demais personagens ouvidos na atualidade se restringem a comentar com surpresa essa enorme permissividade. Todavia, tal libertinagem com a aquiescência de figuras públicas não é escrutinada. A minissérie está preocupada em mostrar o excêntrico.

Doutor Castor ganha nuances ao entrar de cabeça no processo da justiça do Rio de Janeiro contra os barões do jogo do bicho. Episódios espetaculares, tais como a presença de seguranças armados num julgamento da alta cúpula, são dispostos como indícios da ousadia e da desfaçatez dos homens que acreditavam deter a onipotência. Um dos principais resultados da minissérie é a deflagração da presença ostensiva da contravenção e da criminalidade na vida cotidiana de uma metrópole singular como o Rio de Janeiro. Em alguns instantes, depoentes colocam em xeque o amor de Castor de Andrade por Bangu e Mocidade, levantando a suspeita de que sua generosidade era um subterfúgio sórdido para o transformar em alguém querido diante de duas comunidades carentes de assistência estatal. Comparado ao Don Corleone da saga O Poderoso Chefão, o sujeito intimidava juízes de futebol e provavelmente também os jurados do carnaval carioca, mas mantinha tom de voz manso que não escondida sua agressividade incontida. Castor é desenhado como um exemplo de ascensão no subúrbio desamparado de uma localidade repleta de carências, alguém que utilizou o crime como trampolim e o dinheiro enquanto salvo-conduto para ampliar a sua dominação.

A despeito da predileção pelas histórias pitorescas dos bastidores futebolísticos – algo que se excede, eventualmente, dificultando a valorização de outras engrenagens –, Doutor Castor faz um belo trabalho jornalístico de resgate. Por meio de Castor de Andrade, Marco Antonio Araujo alude à devassidão que marca tantas ligações pouco claras entre a criminalidade e os setores legalizados da sociedade. De que maneira alguém que vence pela brutalidade cava um espaço nos corações de comunidades desassistidas, senão patrocinando futebol e carnaval, ou seja, afagando o âmago desses locais que não enxergam tal amparo no poder público? A minissérie esmiúça esse modus operandi que, de certa forma, auxilia o entendimento da contemporaneidade do Rio de Janeiro, em que grupos (como as milícias) se transformam em verdadeiros donos de determinados lugares, exatamente por conta de uma negligência estatal avassaladora. Apesar da pinta de boa praça e da generosidade com os chegados, Castor de Andrade era um bandido que conseguiu fazer parte das altas rodas, conciliando mundos supostamente inconciliáveis. O tipo de figura que ajuda a explicar muito o nosso presente em que pairam sobre notórios (como o presidente) suspeitas de ligação com o crime.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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