Duna: A Profecia :: T01

Crítica

Com o sucesso dos dois filmes assinados por Denis Villeneuve, Duna passou a ser uma candidata a saga multiplataforma. O que facilita o desenvolvimento de outros produtos com essa marca é o fato de que o universo fictício imaginado pelo escritor Frank Herbert é praticamente infinito, comportando inúmeras castas, reinos e um sem número de possibilidades para explorar as lutas político-econômicas que formam as tensões dessa realidade. Duna: A Profecia acontece 10 mil anos antes do nascimento de Paul Atreides, o protagonista das mais conhecidas histórias de Duna. As personagens principais são as Bene Gesserit, membros da irmandade mística com força política. Conselheiras das principais famílias que formam o centro de poder do Império, elas moldam as percepções de nobres influentes a partir do que consideram fundamental para o acúmulo do próprio poder. Seu trunfo é a capacidade de condicionar decisões, movimentos estratégicos e rumos a partir de conselhos que atendem mais aos seus interesses do que necessariamente àqueles que garantiriam harmonia e prosperidade geral. A protagonista da série é Valya Harkonnen (Emily Watson), a líder dessa instituição com atuação obscura até para boa parte de suas integrantes. Ainda que a série não acompanhe a fundação da organização, ela mostra a atuação fundamental de Valya como uma espécie de guinada rumo à insensibilidade.

Duna: A Profecia é visualmente caprichada. Pegando carona na direção de arte dos filmes de Denis Villeneuve, ela mostra uma realidade remota em que os poderes estão distribuídos de modo diferente do que acompanhamos 10 mil anos depois na linha principal da história. Nela, o Império pode ser chacoalhado por uma rebelião iminente enquanto as verdavidentes (como são chamadas as Bene Gesserit) são guiadas pela ganância desmedida de Valya. A rixa entre os Harkonnen e os Atreides é secundária, mas posta como algo secular. Por exemplo, os Harkonnen são vistos como uma família tradicional em descrédito, ridicularizada entre os clãs nobres com acesso ao poder verdadeiro. Já os Atreides nem chegam a ser autônomos dentro da organização política, sendo mais presentes na figura do intrépido rebelde infiltrado no reino comandado por Javicco Corrino (Mark Strong). Nos seis episódios que formam a primeira temporada, os idealizadores se empenham mais em construir a periculosidade das Bene Gesserit dentro de uma estrutura de governo corroída por mentiras e manipulações. Enquanto Valya esconde até das subordinadas algumas atividades eticamente questionáveis, somos levados a perceber a gênese da frieza das Bene Gesserit, de onde surgiu a disposição pelo acúmulo de poder nas sombras. Isso está impresso na forma como Valya manipula a própria irmã na escalada violenta.

A curta primeira temporada de Duna: A Profecia cumpre bem o papel de nos inserir nessa linha cronológica, mostrando um Império em crise e os movimentos estratégicos de famílias e instituições que futuramente serão protagonistas nesse universo fantástico. Em meio aos planos de Valya, há a construção de um vilão (mocinho?) importante, o misterioso Desmond Hart (Travis Fimmel), alguém cujas capacidades fazem frente ao poder das verdavidentes de ler as mentes inimigas e induzir opositores a atos extremos. Sua aptidão de resistir à “voz” que comanda até suicídios é percebida por Valya como ameaça a essa hegemonia verdavidente ardilosamente construída no submundo. Ao mesmo tempo, as novatas da irmandade vão descobrindo histórias escabrosas envolvendo manipulação genéticas e matanças. Há também uma lógica palaciana shakespeareana envolvendo filhos rebeldes, amores impossibilitados pelo ódio entre famílias rivais e segredos de sangue revelados em momentos estratégicos para dar novos significados às relações entre os personagens. Na periferia de tudo isso, a observação do imperador como imagem meramente decorativa que não consegue dominar o poder ao qual tem direito como herdeiro. Assim, é interessante como a série fala do exercício público da autoridade decadente, pois as rédeas do governo estão nas mãos de quem age no subterrâneo, bem longe dos súditos.

Dirigida por Anna Foerster, Richard J. Lewis e John Cameron, Duna: A Profecia tem pouca ação, se focando mais na construção dos canais de poder desse universo pretensamente regido por Javicco. Emily Watson encabeça um elenco competente, desempenhando muito bem o papel da gananciosa e temível Valya Harkonnen, a semente da natureza implacável da irmandade que prefere manipular para acumular força nas sombras. Nos filmes, as Bene Gesserit são figuras essenciais, mas secundárias dentro das tensões de forças entre as famílias de olho na exploração da especiaria, o principal produto de Arrakis (planeta em que se concentram as guerras por poder). A série nos permite mergulhar nas entranhas dessa instituição nebulosa e compreender a estratégia das verdavidentes de sempre estar no comando do discurso, sussurrando no ouvido dos homens e das mulheres que oficialmente mandam a respeito do que devem ou não fazer. Há boas possibilidades à já confirmada segunda temporada, sendo uma delas justamente a ascensão Harkonnen – que deixa de ser um clã sem importância para exercer influência determinante nesse rico universo. O quanto disso diz respeito à importância de Valya Harkonnen? Uma vez escancarados os crimes e métodos hediondos de Valya, as aspirantes a verdavidentes resistirão? Questionamentos que justificam o interesse no que ainda está por vir.

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Marcelo Müller

Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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