Crítica


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Sinopse

No meio do deserto australiano, dentro de um centro de detenção de imigrantes, encontram-se quatro desconhecidos: a aeromoça fugindo das ameaças de morte do líder de uma seita; o pai de família afegão em busca de melhores condições de vida; o vigilante do centro de detenção, confrontado à violação de direitos humanos, e a diretora do local envolvida num escândalo midiático e administrativo.

Crítica

A minissérie se estrutura como um quebra-cabeças. No início, o espectador é apresentado a dezenas de fragmentos de histórias entre o passado e o presente, o real e a imaginação, saltando pelas vivências de Sofie (Yvonne Strahovski), Cam (Jai Courtney), Ameer (Fayssal Bazzi) e Clare (Asher Keddie). A conexão entre estes trechos de forte impacto parece improvável. A montagem brincalhona sugere que a australiana Sofie nada mar adentro até chegar a um centro de detenção a imigrantes, onde é acolhida normalmente em meio a tantos afegãos. Ela teria medo de balões vermelhos, dançaria com Cate Blanchett e depois correria num deserto aberto, perseguida por algum mal invisível. Aos poucos, as peças se encaixam e a imagem se forma diante do espectador. Trechos fundamentais haviam sido ocultados a princípio, enquanto as cronologias se rearranjam. Estado Zero (2020) desconstrói a história linear pelo prazer da reconstrução gradativa, completando o sentido apenas no episódio final. Não há nada particularmente confuso neste processo que toma o devido tempo de ser compreendido pelos espectadores. No entanto, o projeto constitui essencialmente um exercício de montagem.

A narrativa se desenvolve através de paralelismos. Inicialmente, podemos ter a impressão de que Sofie, jovem australiana presa num centro para imigrantes ilegais em seu próprio país, constitui a protagonista. Aos poucos, o ponto de vista é dividido entre as pessoas presas no local e aquelas que garantem o funcionamento da instituição. Enquanto a aeromoça australiana é levada ao centro de detenção, o afegão Ameer chega por meios, digamos, “tradicionais”, fugindo de seu país em busca do estatuto de refugiado na Austrália. Enquanto descobrimos os problemas familiares e pressões psicológicas afetando Sofie, conhecemos os problemas de mesma natureza pesando sobre Ameer. Além desta dupla, outras se formam: o guarda Cam, um sujeito afável confrontado à violência do sistema, é posto em equivalência com Clare, dirigente do local de formação humanitária, porém confrontada à pressão de aplicar forças autoritárias nos detentos. Ambos desempenham ações contrárias às ideias que defendem, perdendo o controle da situação. No início, o local opera de maneira pacífica. A entrada dos quatro personagens, todos novatos na instituição, desperta o caos. Os banhos de sol se transformam em brigas, motins, agressões e flertes com o suicídio.

Uma das qualidades da série se encontra na dedicação em compreender as motivações de cada personagem levado à exaustão. O roteiro de Tom Ayres, Cate Blanchett, Elise McCredie e Belinda Chayo se mostra hábil em sugerir elementos sem evidenciá-los em imagens. O desprezo da família burguesa de Sofie pelos sonhos da jovem se evidencia em duas curtas cenas, enquanto a inadequação ao trabalho de comissária de bordo se justifica em questão de minutos. A experiência profissional burocrática de Clare, a criação tolerante de Cam e a perseguição política a Ameer são suficientemente insinuadas em pequenos diálogos ou gestos, sem a necessidade de flashbacks. Narrações, letreiros explicativos, datas e demais recursos de contextualização são retirados de cena. As diretoras Emma Freeman e Jocelyn Moorhouse não tratam a história enquanto caso específico e excepcional, e sim como fábula universal sobre a imigração contemporânea. As tensões escalam em proporções impensáveis, tanto para detentos quanto para funcionários, devido à incapacidade do governo em lidar com as demandas de asilo. Anos após os primeiros pedidos de visto, os imigrantes continuam presos sem qualquer tipo de resposta. A minissérie trata a entrada aberrante de uma australiana entre os prisioneiros como a faísca necessária à explosão.

Em termos estéticos, a produção se revela coesa, elegante e ao mesmo tempo comedida. Mais da metade da série se desenvolve no centro de detenção, um lugar de proporções relativamente pequenas, com quartos idênticos e pátios similares. As cineastas resistem à tentação de abusar de planos aéreos, movimentos de câmera ou transições ágeis entre personagens. Estado Zero cumpre uma narrativa clássica, porém eficaz ao colocar os personagens em primeiro lugar. Nenhuma imagem chama atenção excessiva a si mesma, enquanto a direção de fotografia valoriza os espaços empoeirados, a cor bege dos pátios e do deserto e a noção de impessoalidade dos uniformes e cenário. Tamanha dedicação ao quarteto central permite que se expressem muito além dos diálogos e cenas de conflitos: Sofie, Cam, Clare e Ameer transmitem sentimentos ainda mais completos quando se calam, seja pela indignação, raiva ou confusão com a situação. Yvonne Strahovski traz várias nuances à aeromoça vítima de distúrbios mentais, possuindo seis horas de narrativa para transitar entre a filha ideal e a mulher potencialmente perigosa. Ela evita gestos grandiloquentes e foge à tentação de demonstrar piedade pela personagem real.

Quanto aos demais atores, Jai Courtney tem recebido poucas oportunidades de comprovar o talento dramático nos blockbusters de Hollywood, porém cumpre de maneira eficaz a evolução do guarda. O mesmo pode ser dito de Asher Keddie, a típica mulher prestes a explodir sob uma aparência de controle absoluto, e Fayssal Bazzi, fazendo o possível para retirar seu personagem da posição de mártir. Por mais que os personagens ajam de maneira reprovável, nem os mais violentos (Rachel House, Sarah Peirse), nem os mais afáveis (Soraya Heidari, Kate Box) são restritos à condição de vilões ou vítimas – mérito tanto dos roteiristas quanto da direção de atores bastante homogênea. Talvez o projeto de seis episódios expanda demais o número de coadjuvantes sem ter a capacidade de acompanhar os conflitos de cada um. Os refugiados presos no telhado do centro de detenção são praticamente esquecidos, o dilema central de Helana Sawires é abandonado ao longo do processo, e o importante símbolo do “homem da maleta” se perde entre tantos dilemas paralelos. Há uma diferença essencial entre não mergulhar na vida dos coadjuvantes para privilegiar os protagonistas e acenar aos conflitos deles para depois abandoná-los na jornada.

Além disso, a profusão de histórias faz com que alguns elementos sejam tratados de modo apressado ou insatisfatório. A metáfora do balão vermelho perde a força e tampouco se desenvolve (além de remeter ao imaginário já consagrado pela franquia de terror It, em teor completamente diferente). A união entre lados opostos da equação soa conveniente demais ao roteiro: sempre que Clare chega ao quarto de hotel, o vizinho e repórter a aguarda na porta para colocar pressão na dirigente do centro. Cam, sujeito tornado truculento, é irmão de Janice, pacifista e defensora dos direitos humanos, o que permite acesso privilegiado aos segredos dos manifestantes. Por menor que seja a cidade, a minissérie trata a vida dos quinze personagens centrais como intimamente interligados. Retira-se a impressão de acaso importante ao realismo, em prol da construção do destino. Ainda mais questionável é a sugestão de que todos os sofrimentos se equivalem, ou seja, que o refugiado Ameer, em luto por uma tragédia familiar, atravessa a mesma dor de Cam, hesitando sobre abrir mão da casa com piscina. Sofie sofre com uma grave violência sexual que acelera seus problemas mentais, mas a angústia dela seria a mesma de uma funcionária pressionada pelos chefes?

Estado Zero encontra suas principais forças e fraquezas nas audácias de montagem. O clímax de um personagem coincide com o do outro, a explosão de lágrimas de Sofie coincide com o desespero de Ameer e a estafa de Cam. Somos levados a compará-los, estimando que estas trajetórias seriam equivalentes. Esta ideia representa um problema ético-político ao equiparar o caso médio (a situação de refugiados afegãos num centro de detenção para imigrantes) com o caso excepcional (a prisão de uma mulher australiana no local). O projeto perde notável força cinematográfica no final, quando investe no sentimentalismo para o desfecho dos personagens. O desfecho é rico em recursos estéticos melodramáticos como música clássica, câmera lenta, pássaros voando no céu e pessoas descobrindo o mar pela primeira vez. Trata-se dos clichês mais desgastados da representação da liberdade. É positivo que o roteiro encerre a trama quando os dilemas individuais se encaminham a um rumo dedutível, sem explicar o que acontecerá no futuro próximo deles. No entanto, Freeman e Moorhouse poderiam optar por uma infinidade de soluções metafóricas para encerrar a situação humanitária sem recorrer a tantos choros e redenções.

Mesmo assim, o saldo é positivo por observar a imigração ilegal como parte de um problema amplo de gestão política, na qual todas as pessoas são afetadas, incluindo os próprios australianos. A anomalia do caso de Sofie se torna uma representação para a anomalia de um sistema falho como um todo: no final, é tão inaceitável que ela permaneça ali dentro quanto todas aquelas pessoas perseguidas em seus países, correndo risco de morte caso sejam enviadas de volta. É notável que uma atriz experiente como Cate Blanchett invista nesta premissa, oferecendo a si mesma um pequeno papel (porém fundamental à trama). Muitos produtores teriam transformado esta história excepcional num caso de superação, seguindo a trajetória do protagonista desacreditado contra o sistema opressor, a exemplo de Erin Brockovich, uma Mulher de Talento (2000) e A Troca (2008). Ao descentralizar o ponto de vista, a série traça um painel sociológico destinado a representar não apenas a Austrália, mas outros países lidando maneira opressora com demandas de asilo. Em paralelo, vale notar a importância da contratação exclusiva de diretoras mulheres, com três roteiristas mulheres, e colocando personagens femininas em papéis de liderança e controle narrativo. Além disso, valorizam-se os talentos locais, com um elenco quase inteiramente composto por atores australianos das mais diversas técnicas e origens étnicas.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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