Crítica


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Sinopse

Um retrato da moderna (e por vezes complicada) vida de uma adolescente norte-americana descendente de indianos.

Crítica

O primeiro aspecto que chama atenção nesta comédia adolescente diz respeito à representação dos Estados Unidos pelos olhos das criadoras Mindy Kaling e Lang Fisher. Diversas séries adolescentes passaram a incorporar personagens negros, asiáticos e gays, por exemplo, contanto que reservados a posições secundárias, limitando-se a dar a réplica aos protagonistas brancos e heterossexuais (vide Sex Education, 2019, Outer Banks, 2020, e Elite, 2018). Aqui, no entanto, as ditas minorias sociais ocupam praticamente todos os papéis entre os protagonistas e os coadjuvantes. Além da família indiana no centro da trama, o atleta cobiçado por todas as meninas da escola possui origem japonesa, os namorados secretos de três personagens são coreanos ou latinos, as duas melhores amigas de Devi (Maitreyi Ramakrishnan) são negras e asiáticas, uma garota possui albinismo e Síndrome de Down, um colega da escola vizinha (representante da Rússia) possui distúrbio do crescimento. As psicólogas e conselheiras estudantis são negras, enquanto a empregada doméstica de Ben (Jaren Lewison) ostenta um sotaque eslavo. O discurso não cumpre uma cota social para escapar à vigilância da representatividade: a minoria constitui a norma, além de ironicamente conquistar a maioria numérica. As “diferenças” ocupam todos os postos enquanto falam por si mesmas.

Ainda mais interessante ao espectador é a possibilidade de ver estas pessoas satirizando os estereótipos mais comuns de suas categorias sociais. Eu Nunca... traz o preconceito à frente da discussão, o que não constitui uma escolha positiva nem negativa em si. O julgamento nasce a partir do uso efetuado destes clichês: os diretores subvertem os lugares comuns ou os reforçam? Eles riem dos personagens, ou com os personagens? Felizmente, o saldo é positivo: embora o roteiro não esteja disposto a desconstruir estereótipos, ele tampouco se utiliza deles para ridicularizar os personagens. Kaling, Fisher e os quatro diretores (dois deles de origem indiana) preferem um tipo de humor explícito e autodepreciativo: são os próprios indianos que satirizam indianos, os asiáticos que propõem brincadeiras com asiáticos, assim por diante. Algumas das melhores piadas da primeira temporada surgem nos momentos em que a mãe (Poorna Jagannathan) satiriza a obsessão hindu por fontes de água, ou quando os dois garotos asiáticos brincam com a suposição de serem inteligentes devido às origens japonesa e coreana. Além disso, a série se mostra disposta a criticar sua própria construção teen, ao parodiar os clichês de outras narrativas adolescentes (Riverdale, 2017, em especial) para reproduzi-los em seguida.

Além destas piadas, o projeto está repleto de acenos à cultura pop, de modo a criar laços mais estreitos com o público adolescente. Grey’s Anatomy, 2005, Rick e Morty, 2013, Game of Thrones, 2011-2019, Sex and the City, 1998-2004, saga Harry Potter, Cats (2019) e mesmo cantores como Kanye West e políticos como Pete Buttigieg são citados pelos personagens. Isso não significa que todas as gags funcionem à perfeição: algumas referências se tornam abruptas, inseridas forçosamente nos diálogos em busca de risos fáceis. O humor é bem-sucedido na maior parte do tempo, quando provém das inseguranças típicas da adolescência (o desejo sexual, a dificuldade de inserção social, a cópia malsucedida do mundo adulto). No entanto, certos recursos falham, sobretudo no que diz respeito à narração do tenista John McEnroe, com uma participação especial de Andy Samberg. Os criadores se inspiram num estilo semelhante àquele de Arrested Development, no qual um narrador ao mesmo tempo irônico e explicativo tratava de unir diversas histórias paralelas. Em Eu Nunca..., McEnroe se torna narrador-personagem, falando de si mesmo em primeira pessoa, comentando a fama de ranzinza e elogiando suas vitórias nas quadras de tênis. A ideia é curiosa, porém intrusiva demais: a narração surge o tempo inteiro, seja para explicar elementos que o espectador por ver por si mesmo, seja para fazer pequenas piadas de sucesso mediano. Além disso, McEnroe claramente não é ator: quando Samberg assume o controle da voz off, o resultado melhora sensivelmente.

O roteiro funciona sobretudo enquanto narrativa do luto. After Life (2019-), outra série da Netflix, extrai humor da morte ao abordá-la de maneira cínica e frontal. Já a série adolescente prefere revelar as maneiras encontradas por Devi para não realizar o luto e fugir à tristeza. Tanto a jovem quanto Tony (Ricky Gervais) tratam os amigos ao redor de maneira detestável, no entanto a garota adolescente não possui consciência de fazê-lo. Os dois últimos episódios de Eu Nunca..., quando a morte do pai é confrontada, servem a justificar o comportamento errático da protagonista e lhe fornecer alguma forma simbólica de superação. Antes disso, no entanto, Devi se limita a uma sucessão de cenas de humilhação (dela mesma ou dos amigos) para mascarar seus reais sentimentos. Isso significa que o discurso desenvolve bem o arco da personagem, atando os fios soltos espalhados ao longo da trama (a noite do acidente, a carreira musical, alguns recalques e atos falhos), porém demonstra menos cuidado com os coadjuvantes. A primeira metade da temporada dedica bastante tempo ao sugerir os conflitos de Fabiola (Lee Rodriguez) com a sexualidade, de Eleanor (Ramona Young) com a mãe ausente, e de Ben com os pais ausentes, apenas para resolvê-los com uma facilidade inverossímil. Os roteiristas garantem que cada adolescente tenha um problema central a resolver, mas na hora de encarar as dores, as únicas personagens cujos sentimentos se desenvolvem de fato são Devi e a mãe.

O desempenho do elenco é desigual: quanto Maitreyi Ramakrishnan e Poorna Jagannathan possuem trabalhos muito competentes, Lee Rodriguez e Ramona Young se tornam meramente caricaturais. Rodriguez passa metade da temporada arregalando os olhos sem piscar, enquanto Young jamais trabalha sua obsessão por teatro para além das piadas esporádicas nos diálogos (nada no trabalho corporal nem no trabalho de voz sugere uma diva caprichosa ou uma nerd dos musicais). No papel de Paxton, Darren Barnet possui uma tarefa delicada por ser o personagem de teor moral mais ambíguo da trama: ele sabe muito bem do desejo sexual de Devi por ele, mas finge não saber, e alterna entre a sedução e a amizade de modo conveniente. O garoto pode ser facilmente visto como manipulador e explorador da ingenuidade da protagonista, ainda que o roteiro insista em abordar os encontros entre Devi e Paxton como um belo romance. Até por isso, a reviravolta amorosa ao final cai muito bem na trajetória de emancipação dos personagens. No entanto, a introdução de Eve (Christina Kartchner) para servir de alvo amoroso da garota lésbica, e de Prashant (Rushi Kota) para balançar o coração de Kamala (Richa Moorjani) resulta acessória demais, quase um deus ex machina na vida das meninas. A série demonstra boa vontade com seus personagens, apesar de não possuir muita sutileza no tratamento dos conflitos.

Ao final, é louvável que Eu Nunca... privilegie a conclusão dos conflitos originais ao invés da necessidade de lançar ganchos para a segunda temporada. Como se poderia esperar, há possibilidades abertas à sequência, porém estes recursos soam orgânicos dentro da trama que se encerra bem. Caso termine na temporada original – algo improvável, visto o bom trabalho da produção -, terá se resolvido enquanto trama autônoma. Este seria o contrário de Outer Banks, série tão dependente de seus mistérios que prefere deixar quase todos os elementos importantes para a continuação, despertando a impressão de temporada não concluída. Ainda em paralelo com o outro projeto teen, a série de Mindy Kaling também busca uma galeria impressionantemente bela de protagonistas (os pais, mães, primas e namorados indianos parecem saídos de um casting de modelos), ainda que sua beleza não corresponda ao padrão branco, loiro e heterossexual da maioria das séries. Se for para idealizar aparências, que seja aquela de corpos e sexualidades distintos da média. Em sua eventual segunda temporada, Eu Nunca... poderia fazer alterações em sua narração exagerada (substituindo John McEnroe por outra celebridade) e nos interesses amorosos abruptos dos personagens secundários. Caso trate sua história com calma e menos ânsia de agradar em cada cena, a história pode se tornar mais fluida. Ainda assim, garante um divertido retrato das angústias adolescentes por um ponto de vista feminino.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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