Crítica


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Sinopse

Três mulheres presas a padrões que não as fazem felizes. Stella abriu mão dos sonhos em prol do casamento; Lívia sofre por não ter controle sobra sua vida afetiva; Cléo tem baixa autoestima e se esforça para garantir seu sustento.  

Crítica

A ideia, em si, era ótima: a partir das perspectivas de três mulheres de distintas gerações, estabelecer os paralelos e as diferenças sobre como cada uma delas encara o desafio de seguir adiante em uma sociedade assumidamente machista e misógina. Esse estudo a respeito da condição feminina no Brasil do século XXI, no entanto, sofreu impactos que repercutem em cena na minissérie Filhas de Eva, produção original da Globoplay que, talvez mais do que qualquer outro projeto da plataforma, se sustenta em um limite tênue entre o seriado, estrutura enxuta e objetiva, e o novelesco, ao qual é inegável a predileção e apreço de sua produtora. A impressão, portanto, é que na incapacidade de dar origem a uma novela, os realizadores se viram obrigados a condensar suas ambições e expectativas em apenas doze episódios, por mais que se mostrem, ainda assim, excessivos diante do pouco que merece, de fato, ser desenvolvido. Como se vê, havia algo válido na origem, mas o alcançado deixa a desejar tanto pela falta de foco, como também pela maneira desajeitada como tais temas são abordados.

A série criada por Martha Mendonça, a partir do livro da própria autora, apesar de ser homônima a sua origem literária, traz grandes diferenças nessa adaptação audiovisual. No original, dentre tantos contos, poderia se imaginar a história de Eva, uma mulher que, ao completar 50 anos de casada, decide se separar e reinventar a própria vida, ao mesmo tempo em que acompanha as turbulentas relações amorosas de suas filhas. Essas, ao serem levadas para a telinha, se dividiram em duas, sendo que somente uma continuou como descendente da protagonista – que agora atende pelo nome de Stella e é interpretada por Renata Sorrah. Uma das grandes intérpretes da televisão brasileira, a atriz pode ter tido poucos personagens interessantes no cinema – a cafetina Vitória, de Madame Satã (2002), pelo qual foi indicada ao Grande Prêmio do Cinema Brasileiro, ou Regina, uma das condutoras do clássico Matou a Família e Foi ao Cinema (1969), de Júlio Bressane, se destacam – mas tem seu nome para sempre ligado à história da telenovela nacional. No entanto, quem chegar em Filhas de Eva à espera de uma mulher de garra, mas um tanto louca, como Nazaré Tedesco, é com pesar que, no decorrer do capítulos, perceberá estar diante de uma variante da Heleninha Roitman.

Stella – não mais Eva, portanto – segue um impulso e, no meio da festa de comemoração das Bodas de Ouro, declara, em alto e bom tom, que quer o divórcio de Ademar (Cacá Amaral, responsável por um tipo que não permite entender como a esposa conseguiu ficar ao lado dele por cinco décadas). Esse, obviamente, não aceitará a notícia de bom grado, e fará de tudo para se vingar: desde cortar os cartões de crédito da agora ex-esposa como, também, evitar que ela consiga levar qualquer coisa com a separação. Sem ter nem onde ficar, a mulher acaba se refugiando na antiga casa dos pais, em um bairro na periferia do Rio de Janeiro, lugar carente de tantos reparos que é de se estranhar que não tenha vindo abaixo ainda. Apesar de repetir a todo instante que está atrás de uma nova vida, tudo o que fará até o final dessa temporada é seguir lidando com as armadilhas deixadas pelo antigo companheiro, que vão desde contas ilegais no exterior, dólares escondidos debaixo do nariz dela e até câmeras de vigilância para controlar seus passos.

A trinca é composta, ainda, por Lívia, a filha, papel que permite à Giovanna Antonelli criar uma figura pela qual é quase impossível nutrir qualquer tipo de afeição ou simpatia, e Cléo, a moça pobre, porém decidida, vivida por Vanessa Giácomo. Entre as duas não há ligação óbvia, mas acontece que acabam se cruzando e, pelo bem dos acontecimentos seguintes, na falta de explicação melhor, desenvolvem laços de amizade. O que desconhecem, no entanto, é que a última se torna amante de Kléber (Dan Stulbach, menos problemático do que se poderia supor, pois mais reage à personalidade que carrega na superfície do que se arrisca no inesperado), marido da primeira. Aliás, Cléo, por mais carismática que seja, chega ao fim de sua jornada como a mais desperdiçada do elenco: se no começo anuncia estar atrás de uma vida melhor, lidando a autoestima no processo, o que termina por fazer é atender as ligações de uma (Lívia) ou do outro (Kléber), ao mesmo tempo em que seus dramas familiares (a mãe com Alzheimer, defendida com garra por Analú Prestes, ou o irmão irresponsável recém-saído da prisão, tipo que nas mãos de Erom Cordeiro poderia ter rendido mais) acabam sendo apenas apontados, sem nunca ganhar o espaço merecido.

Se a atenção que Cléo recebe acaba sendo insuficiente, a dimensão que Lívia assume é hiperdimensionada, visto que suas decisões não são convincentes, suas atitudes carecem de lógica e mesmo seus dilemas soam frágeis. Apaixonada pelo marido, não percebe que sufoca o relacionamento dos dois, da mesma forma como afasta a filha adolescente (Débora Ozório, de Me Chama de Bruna, 2019, a mais autêntica do conjunto). No entanto, ao invés de se corrigir – e seguir o exemplo materno em busca de uma autovalorização – segue se humilhando, passando por cima até de gestos imperdoáveis, como ser abandonada dentro de um avião rumo ao exterior. No meio disso, há um esquema de corrupção política e remessas de dólares não declarados para o estrangeiro, falsificação de obras de arte e outras falcatruas dignas de velhas raposas, por mais que essas sejam os maridos, e não as que deveriam estar conduzindo a história. Aliás, como se isso não fosse o suficiente, há tempo ainda para inserir debates fugidios sobre eutanásia, agiotas, perda da virgindade, investigações jornalísticas e até a prática de jogos clandestinos, como se todo o resto não fosse suficiente.

Como resumo da obra, a impressão deixada pela série – que teve consultoria de Gloria Perez, o que justifica sua natureza rocambolesca digna do horário nobre – é que seus roteiristas, em nome de belas sequências – como o protesto de peito aberto em frente ao apartamento de um deputado – não se importaram em atropelar a lógica e o bom senso, ignorando comportamentos prévios e desprezando as naturezas dessas mulheres. Afinal, por mais diferentes que sejam entre si, para os responsáveis o importante era a convergência em questões comuns, ainda que os caminhos até eles se demonstrem improváveis. Filhas de Eva tem um começo auspicioso, capaz de provocar debates e levantar posicionamentos. É de se lamentar, portanto, que no decorrer dos seus episódios vá abrindo mão destas conquistas em prol de uma narrativa convencional e corriqueira, mostrando-se incapaz de seguir as trilhas desenhadas no início. Assim, aponta não apenas para um desperdício de oportunidade, mas também ressalta o desprezo por um discurso que deveria provocar mudanças, mas tudo o que consegue é reafirmar velhos conceitos.

 

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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