Crítica


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Sinopse

A comediante Deborah Vance se encontra em processo de declínio. É então que resolve contratar uma jovem estrela da internet para escrever novas piadas para ela. Os primeiros contatos não são animadores, mas ao longo do tempo fica claro que essa animosidade é um ingrediente ideal para temperar essa parceria criativa.

Crítica

Uma das séries mais bem-sucedidas dessa temporada, Hacks pode se inscrever enquanto comédia apenas pelo fato de cada um dos seus episódios terem em torno de meia-hora de duração, o que termina por encaixá-la dentro de uma pré-determinação um tanto que arbitrária da televisão norte-americana (até 30 min é comédia, acima disso já vira drama), como se a apropriação de um gênero ou outro fosse uma questão de minutagem, e não temática. Deixando esses pormenores de lado, o que se verifica no programa criado por Paul W. Downs (surpresa! Também ator, é o intérprete de Jimmy, que responde por uma das linhas paralelas mais cativantes do show), em parceria com Lucia Aniello (The Other Two, 2019) e Jen Statsky (The Good Place, 2016-2020) é um interessante estudo a respeito de duas personalidades tão distintas mas, ainda assim, absolutamente complementares, envoltas por um cenário de estrelismos e vaidades, através do qual permitem, com muito cuidado, vislumbres de grande humanidade e compaixão. Sentimentos esses que não se eximem em contaminar também a audiência, em um resultado muito acima das expectativas.

A grande estrela é Jean Smart, atriz consagrada na telinha por séries como Frasier (2000-2001) e Watchmen (2019), entre tantas outras. Coadjuvante por excelência, dessa vez é alçada à condição de protagonista tanto em função do tipo que se encarrega em dar vida, uma comediante stand-up residente em Las Vegas e conhecida nacionalmente, como também pelo próprio histórico da artista, que muito já fez para merecer tamanha reverência. No entanto, a história de fato tem início com Ava (a novata Hannah Einbinder), uma roteirista que acaba “queimando seu filme”, ou seja, tem sua reputação abalada em Hollywood por literalmente falar demais, e na hora errada. Assim, com suas opções de emprego reduzidas próximas a zero, lhe restará apenas ficar responsável pelas piadas de uma celebridade já em fim de carreira, mas que chegou a ser uma referência nos seus áureos tempos: Deborah Vance (Smart). Acontece que o agente das duas – Ava e Deborah – é o mesmo, o Jimmy citado no primeiro parágrafo. Aparentemente, com uma só tacada, todos ficam felizes: ele agrada duas clientes, a mais nova arruma o que fazer e a veterana fica com a promessa de renovação em seu número. Tão certo quanto também será óbvio que as coisas não serão tão fáceis quanto qualquer um dos três desejaria.

Ava é a típica millenial, aquela que fala o que quer, como quer, e não está muito preocupada com as consequências – ao menos, é claro, até essas começarem a se colocar no seu caminho. Deborah, por sua vez, tem uma longa carreira atrás de si, e se hoje não tem papas na língua, não é por simplesmente acreditar ser seu direito, mas por tê-lo conquistado de fato. As duas, como se pode imaginar, não se darão bem de imediato. A primeira temporada de Hacks se encarrega justamente dos desenlaces entre elas, terminando em uma ruptura e o inevitável acerto de contas posterior. Assim, no começo desse segundo ano as duas ainda estão estranhas uma com a outra, mas tentando se acertar. Porém, há ainda outra pedra no caminho: mais uma vez, Ava disse o que não devia, dessa vez a respeito de Deborah – enquanto as duas estavam brigadas – e para uma produtora que pretende aproveitar os segredos sujos da velha diva num novo seriado. Evitar que isso aconteça é vital para que elas, agora reconciliadas, possam permanecer desse jeito.

Uma outra mudança – dessa vez de cenário – também marca ao menos o início da segunda temporada. Uma das grandes certezas que Ava trouxe à equipe de Deborah Vance é de que, após tantos anos no mesmo ambiente, havia chegado o momento de se colocar em movimento. Aqui se faz necessária uma explicação a respeito da cultura local. Las Vegas não é Estados Unidos, apenas. É quase como uma cidade à parte, um lugar do mundo, para onde turistas de todos os lugares do planeta se dirigem diariamente. Então, se alguém em início de carreira precisa percorrer diversas regiões e estados em turnê para atingir os mais variados públicos, aqueles que atingem determinado status – e também idade – se dão ao direito de escolherem apenas um destino: Vegas. Ao invés do artista mudar de estádio ou anfiteatro diariamente ao longo de todo o país, quem se altera, assim, é a audiência, pois essa renovação é constante. Vance – assim como Elvis Presley, Celine Dion, Elton John e tantos outros – sabia que seria mais cômodo seguir desse modo. O sopro de modernidade que Ava está lhe oferecendo a motiva a sair dessa área de conforto. Algo que nem sempre é fácil, pois a colocará em contato com antigos colegas, costumes há muito esquecidos e na busca por se atualizar para conquistar novos públicos.

Nem tudo em Hacks, no entanto, se resume à dinâmica entre Vance e Ava (por mais que as duas sejam, de fato, o verdadeiro motivo para se acompanhar o programa). Jimmy, como apontado acima, tem uma subtrama a responder envolvendo seu relacionamento com a secretária, Kayla (Megan Stalter, de Queer as Folk, 2022), uma garota sem noção – mas de bom coração – que só ocupa tal posto por ser filha do dono da agência, e as idas e vindas entre os dois, como gato-e-rato, oferecem um humor leve e descontraído que não existem na maior parte da narrativa. Marcus (Carl Clemons-Hopkins, de A Lenda de Candyman, 2021), o empresário de Deborah, por outro lado, atravessa um romance de ocasião que não chega a ser bem explorado pelo enredo, assim como o desajuste familiar de Ava, envolvendo a mãe viúva (Jane Adams, de Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças, 2004). Por outro lado, a maternidade problemática ganha melhores contornos nas tentativas de proximidade entre Deborah e a filha, DJ (Kaitlin Olson, de As Bem-Armadas, 2013). Marcus, aliás, também terá questões com a mãe a serem resolvidas. Esse conjunto, como se percebe, oferece um bom reflexo da verdadeira natureza do sentimento que passará a ser cultivado entre as protagonistas.

Não existe uma boa tradução para o português para o termo que dá título à série. Hacks tanto pode vir de hackear, ou seja, se intrometer, invadir, ultrapassar, como também ser uma uma expressão pejorativa destinada a escritores, apontando para uma suposta mediocridade. Ter esse entendimento é um bom indício, mas apenas o começo sobre como melhor aproveitar a trama. Oportunidade de ouro tanto para Smart comprovar seu valor como para Einbinder revelar seu talento, eis aqui um seriado que nasce e morre nesse dispositivo entre elas, o quanto necessitam uma da outra, e a resistência que ambas possuem em admitir essa verdade. Frívolo quando necessário, guarda no todo uma profundidade insuspeita que vai além do que a premissa poderia sugerir. E eis aqui o seu maior segredo: não apenas um elenco em plena forma, mas também roteiro e diálogos afiados, que não só entregam o prometido, mas também, tal qual seus personagens, estão dispostos a entregar mais do que o esperado.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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