Crítica


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Sinopse

Sofia é uma advogada viúva. Ela toma ciência de que o falecido mentiu a vida inteira sobre sua profissão. Sofia apenas descobre a mentira ao se tornar a herdeira da produtora de filmes pornográficos dele. No entanto, com o empreendimento quase falido, ela precisa se adaptar à nova realidade e, quem sabe, pensar em alguma forma de reerguer o negócio.

Crítica

Baseada na série francesa homônima exibida em 2008 – que teve três temporada e um total de 30 episódios – essa Hard nacional parte basicamente da mesma premissa, para, aos poucos, ir se adequando ao gosto verde e amarelo. A questão é que esse desenrolar não se dá sem alguns (muitos) solavancos. A própria protagonista, personagem vivida por uma Natália Lage que não consegue encontrar o ponto – após anos vivendo adolescentes nas telas, ela segue com cara de garota, mas aqui tem o desafio do papel de uma mulher madura, o que faz sem muita convicção – tem uma personalidade instável, que a cada momento aponta para um lado diferente. É difícil saber o que ela quer de verdade. E sem essa definição, sofrem tanto as figuras ficcionais da trama, como também o espectador interessado em descobrir onde esse imbróglio armado logo no capítulo de estreia irá parar.

Criada por Cathy Verney – que chegou a ser indicada ao Globo de Cristal francês como melhor seriado do ano – e adaptada por Danilo Gullane, irmão dos produtores Caio e Fabiano Gullane (responsáveis pelo formato nacional), Hard parece ser um daqueles programas de uma só piada, estendida de forma exaustiva ao longo dos seis episódios desse ano de estreia. Tudo começa ainda antes dos créditos de abertura, quando o marido de Sofia (Natália Lage), Alex (o próprio Fabiano Gullane, numa rápida ponta como ator), morre em um acidente idiota em casa – cai da cobertura ao tentar recuperar o drone que havia pousado em uma árvore vizinha. Viúva, ela, que sempre acreditou que o marido trabalhava com softwares na internet, enfim descobre qual era a real atividade do esposo: ele era dono de um site pornô – aliás, um dos mais conceituados do mercado – que produz conteúdo exclusivo. Ou seja, além de exibir aos assinantes e espectadores de ocasião, também realiza filmes do gênero e emprega ao menos uma dezena de profissionais do ramo.

A questão começa a se complicar já nesse desenho rápido dos personagens. Tem-se como protagonista uma dondoca que nunca trabalhou na vida – nem se perguntou de onde vinha o dinheiro que sustentava a bela casa onde morava, a escola dos filhos e as viagens da família. Além disso, trata-se de uma mulher absolutamente conservadora, que se assusta com cada revelação a respeito do passado do seu companheiro recém-falecido. Quando visita a produtora Sofix (o nome da empresa não poderia ser mais sutil), que a partir de agora é sua e depende das decisões dela para continuar operando, tudo que vê lhe causa não apenas espanto, mas também repulsa e desgosto. O impulso inicial é vender e acabar com o negócio, mas duas coisas a impedem de seguir com esse plano: primeiro, há dívidas assumidas que precisam ser sanadas; e segundo, o canal é um sucesso, e simplesmente fechá-lo cortaria sua única fonte de renda. Ninguém, no entanto, explica a falta de lógica entre um problema e outra. Afinal, se dá lucro, por que está devendo na praça? “Ah, foi um empréstimo assumido para um plano de expansão”, alguém pode dizer. Nesse caso, onde o dinheiro foi parar, se tudo ali parece operar no limite do sustentável?

Sofia tem, de um lado, dois motivadores que a estimulam a deixar as ressalvas de lado: a sogra, Margot (Denise Del Vecchio, que começa bem, mas logo perde espaço), e a melhor amiga, Lúcia (Martha Nowill, que se tivesse a série para si certamente alcançaria um resultado bem mais satisfatório). Enquanto a primeira lhe chama à razão, acumulando fatos que a obrigam a mudar de ideia, a segunda age que forma ainda mais escancarada, apelando para os seus sentidos. Sexo é bom e todo mundo gosta, afinal de contas. E o que consegue é mostrar para a outra que, se deixar conceitos ultrapassados de lado, talvez até consiga se divertir nessa nova situação. Ainda mais quando a dona se vê atraída pelo maior astro do estúdio, o garanhão Marcello Mastroduro (Julio Machado, mais desenvolto como ator pornô do que como apaixonado disposto a largar tudo em nome de um novo amor).

O problema maior de Hard, no entanto, é mesmo a falta de personalidade da protagonista. No começo, ela é toda conservadora. Depois, quando percebe que não pode abrir mão da herança, decide que pornô pode ser visto também como arte, e para tanto convoca um diretor de teatro (participação constrangedora de Rodrigo Bolzan), que logo entra em conflito com o profissional da casa (Fernando Alves Pinto, criando um personagem interessante, que nunca é desenvolvido do modo que merecia). Quando isso também não dá certo, ela começa a “oferecer fantasias sexuais sob encomenda”. Na teoria, qualquer pessoa, mediante o preço certo, poderia ser o astro do seu próprio filme pornô. Na prática, porém, o que acontece é que a iniciativa transforma os atores da produtora em michês e prostitutas de luxo. E o mais bizarro: a proprietária nem parece se dar conta disso! Quando a verdade é jogada na sua cara, ainda se mostra amuada, como se não gostasse de ser contradita. Se essa mudança tivesse sido desenhada de modo gradual – veja o caso da norte-americana Breaking Bad (2008-2013), que ilustra com perfeição como um personagem pode ser transformado no oposto da sua primeira apresentação – talvez a proposta até tivesse funcionado. Infelizmente, isso nem de perto chega a ser percebido por aqui.

Como dito antes, essa primeira temporada conta com apenas 6 episódios (a versão francesa tinha 10 capítulos por ano). A impressão é que se tratava apenas de um aperitivo, um teste para avaliar se a ideia iria ou não funcionar. Muitos elementos são jogados na trama – a pressão da filha mais velha, prestes a descobrir o segredo da mãe; a alienação do caçula, que só pensa em uma prometida viagem até à Amazônia; o apoio da amiga, que oferece uma solução, mas também não a orienta sobre a dosagem do remédio; o interesse exagerado do conquistador que renega seu passado em nome de uma relação que não possui a menor possibilidade de dar certo. Nenhum deles chega a ser desenvolvido com maior cuidado, deixando várias pontas soltas que podem ou não ser retomadas numa eventual segunda temporada. Hard parte do princípio que sexo ainda é um assunto tabu para muita gente, e apenas por isso deveria ser suficiente para estimular a atenção da audiência. Só que sem a devida abordagem, termina por soar mais como uma brincadeira de criança, e nem mesmo debates pertinentes, como a validade artística da pornografia, acabam alcançado um espaço apropriado na narrativa. Ao atirar para tantos lados, muito estrago é feito, sem alcançar alvo algum com efeito.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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