Crítica


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Sinopse

Charlie e Nick são adolescentes que descobrem serem mais do que apenas amigos. E isso vai gerar algumas dificuldades, mas eles estão dispostos a enfrentá-las para viver esse amor.

Crítica

Assim como na poesia, também é válido na história elaborada por Alice Oseman: Imogen tem uma queda por Nick, que não sabe ainda o quanto gosta de Charlie, que acha que vai ser namorado de Ben, que passeia de mãos dadas com uma garota qualquer, provavelmente colega de Elle, que até ano passado estudava em um colégio só para meninos junto com Isaac, amigo de Tao, o único que não se deu conta de sua paixão por Elle, agora melhor amiga de Tara, a primeira menina a beijar Nick, mas que agora é namorada de Tori, que não dá a mínima para Harry, o chato que não gosta de ninguém. Parece um emaranhado complicado de se entender, mas ao longo dos oito episódios dessa primeira temporada de Heartstopper, mais interessante do que acompanhar as idas e vindas de todos esses romances é permanecer atento à honestidade com a qual eles são vividos em cena, sendo abraçados por um elenco na maioria estreante com tanta entrega e carinho que torna impossível ao espectador iniciado no universo da autora não se deixar apaixonar ao lado de figuras tão marcantes e carismáticas.

Oseman é uma autora de YA (Young Adult, ou seja, para jovens em formação) bastante conhecida na Inglaterra. Quase como um esforço de desanuviar a cabeça, escolheu dois coadjuvantes de um dos seus livros mais comentados e, a partir da relação já estabelecida entre eles, decidiu dar uma olhada para trás e estudar como teria sido o começo da história que agora compartilham. Mais do que uma simples ‘prequel’, porém, estava também na forma assumida para seguir por este caminho o diferencial: através de histórias em quadrinhos, publicadas gratuitamente pela internet, e posteriormente reunidas em livros. Até o momento foram lançados quatro volumes, e a série Heartstopper se ocupa dos dois primeiros. Para muitos, Charlie (Joe Locke) seria o óbvio protagonista – afinal, é o responsável por introduzir a audiência a esse ambiente – mas será a partir do relacionamento que o garoto irá estabelecer com o colega Nick Nelson (Kit Connor, um dos poucos mais experientes, que entre outros trabalhos foi o jovem Elton John em Rocketman, 2019) que o enredo, enfim, ganhará vida. E será justamente esse que terá a maior jornada de transformação pela frente.

Assim como Love, Victor (2020-2022), Heartstopper também é uma série sobre dois colegiais que se descobrem apaixonados um pelo outro. O que esse segundo traz de novo ao conjunto é o tom britânico dado à narrativa, mais pé no chão e menos afeita a soluções, digamos, hollywoodianas, sejam elas voltadas a um senso comum mediano ou mesmo uma visão idealizada da realidade. O bullying, por exemplo, é uma preocupação constante no programa dirigido por Euros Lyn (Doctor Who, 2005-2010). Assim como se assumir como se realmente é não chega a ser visto como uma tarefa fácil, em parte pelas consequências exteriores – como aqueles ao seu redor irão lidar com a ‘novidade’? – mas também pelo debate interno que uma dúvida como essa dá início. Quando é apresentado ao público, Charlie é visto como o único garoto gay de sua escola, e esta condição não só está estabelecida há mais de um ano, como é também pública e notória. Quando é colocado, no início do novo ano letivo, para sentar ao lado de Nick Nelson, um menino mais velho que conhecia de vista, mas com o qual não tinha a menor intimidade, a mudança é maior na vida deste do que na do suposto protagonista.

Os dois colegas não apenas se tornam amigos, como também rapidamente se veem inseparáveis. Eis, portanto, não apenas o início de uma atração, mas de uma amizade sólida. Nick é jogador de rugby, é alto, loiro e atlético, amigo dos valentões e desejado pelas garotas da escola feminina do outro lado da rua. O clichê, portanto, veria nele o tipo ideal para atormentar a vida de alguém como Charlie. Felizmente, é o oposto do que por aqui se verifica. A aproximação será tamanha que não serão suficiente apenas os momentos em classe, mas logo se verão dividindo tardes de sábado e programas típicos de adolescentes, como idas ao boliche ou ao cinema. Charlie, no entanto, tem muito claro o seu querer e anseia por carinho e atenção. Receber esse cuidado de alguém como Nick está além de tudo o que sempre sonhou – o que revela, também, a fragilidade de sua autoestima. Por isso, leva tempo para se convencer da paixão que sente. Mas não luta contra ela, por maiores que sejam os alertas – dos amigos ou dele mesmo – de que tal interesse pode levar à frustração. Mas enquanto isso, o que se passa com Nick?

Eis, talvez, um dos maiores acertos de Heartstopper: o modo sensível como lida com a descoberta do desejo homossexual não a partir daquele que busca ser aceito, mas tendo como ponto de vista o que quer, antes de qualquer coisa, se encontrar. E esse sentimento não se verifica apenas em Nick, o jovem que nunca havia visto outros meninos como ele da maneira como agora enxerga Charlie. Alcançar esse entendimento o coloca distante de pensamentos obtusos e reducionistas, mas vai além. Quer entender o que se passa consigo, o que isso significa para sua vida e quais serão as consequências a partir dessa compreensão. Uma boa aliada para esse desenrolar reflexivo se dá nas conversas que o garoto tem com a mãe, interpretada por não menos do que Olivia Colman. A vencedora do Oscar por A Favorita (2018) possui não mais do que três ou quatro cenas pontuais ao longo de toda a série, mas cada aparição é nunca menos do que certeira – e a final, que encerra a temporada, é tão precisa em gestos e emoções que inevitavelmente levará o espectador às lágrimas, não pelo melodrama, mas pela carga de identificação que apresenta.

Alice Oseman não está preocupada em entregar um romance para consumo barato e descartável, e isso se percebe pelo detalhamento e profundidade que oferece a seus personagens. Se o desenrolar do envolvimento de Charlie e Nick é a chave de Heartstopper, é também com grata surpresa que se percebe que aqueles ao redor deles também fogem do óbvio. Do garoto rico e mimado ao casal de amigas lésbicas, da jovem trans ao rapaz de sexualidade indefinida, esses são tipos que podem, num primeiro momento, surgir a partir de uma identidade de gênero e orientação sexual, mas à medida que deles é possível se aproximar, mais diversos e facetados irão se revelar. Não se tem aqui grandes aspirações, planos para dominar o mundo ou almejar fortunas incalculáveis, mas, ao mesmo tempo, será possível encontrar algo mais rico e valoroso. O tom de fábula percorre cada um dos eventos, mas nunca fantasioso o bastante para se afastar da realidade. Um pequeno detalhe que faz a diferença e permite que o coração pulse, enfim, na direção esperada.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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