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Sinopse

Jovem londrina segura, com vários amigos e um namorado apaixonado residente na Itália, Arabella segue uma próspera carreira de escritora. Todavia, um incidente faz com que tenha de repensar sua vida.

Crítica

Pode ser só um detalhe para a maioria dos espectadores, mas uma leitura semiótica atenta irá apontar para uma implicância de significados mais ampla. Durante os créditos de abertura, se manifestam primeiramente apenas o início do título (“I May Destroy”), indicando que essa suposta destruição é mais geral do que um apontamento individual. Apenas depois, ainda de forma hesitante, é que o “You” se concretiza, revertendo as expectativas. A protagonista, afinal, é uma verdadeira metralhadora, que através de seus gestos e, principalmente, palavras, atira para todos os lados. Nesse processo, são muitos os que, até mesmo inadvertidamente, acabam se tornando alvos. Mas o que irá perceber logo no começo da trama é que, apesar desses tiros aparentemente a esmo, a mais atingida é ela mesma. É por isso, a partir desse entendimento, que surge a necessidade de reparação. De revisão de ideias e objetivos. Olhar para si, antes de para os outros. Só assim poderá seguir em frente. Dessa forma, I May Destroy You faz de sua jornada um conjunto acima do mero entretenimento ou conto de amadurecimento. O que se vê é um exemplo de sobrevivência em sintonia com os duros tempos atuais.

Arabella (a fantástica Michaela Coel, também criadora da série, roteirista, produtora e diretora de todos os episódios) é uma garota como tantas outras, que tinha como hábito passar grande parte do seu dia nas redes sociais. Com o sucesso entre seus seguidores, veio a ideia de elaborar um livro a partir de uma coletânea dos seus tweets de maior repercussão, uma iniciativa que a confirmou como uma “voz de sua geração”. Tanto é que conseguiu um contrato com uma editora para um novo lançamento, agora original e produzido especificamente com esse propósito. O que parecia a realização de um sonho, na verdade, se revelou apenas o começo de seus problemas. Afinal, ela faz parte de uma geração que não pode ser formatada tal qual às anteriores. Seu processo é outro, e por mais que tente se encaixar nos velhos padrões, as diferenças serão sentidas. Tanto que o primeiro reflexo será um bloqueio criativo. O capítulo de abertura, tão esperado pelos editores, nunca chega às mãos desses. Uma crise se instaura. E é preciso resolvê-la.

Se o mote descrito acima seria suficiente para uma temporada inteira, em I May Destroy You serve apenas como ponto de partida. Perdida e sem ideias, Arabella decide aliviar a pressão e sair para uma noite com amigos. Mesmo sem abusos ou exageros, acaba bebendo um pouco além do necessário, talvez se ver entre pessoas de confiança – ou assim ela acreditava. Mas à medida em que a noite avança, cada um descobre novas prioridades. A melhor amiga sai mais cedo, o colega se entretém com uma garota recém conhecida, e não demora para aquela que estava cercada por conhecidos se ver sozinha. Só que não percebe. Nem tem ciência da aproximação de um estranho. Que a leva ao banheiro do bar e termina por abusar dela. Esses eventos só surgirão em sua mente no dia seguinte. Através de lembranças esparsas, um tanto desconexas. A garota que queria apenas relaxar e se divertir agora tem um novo quebra-cabeças pela frente. Lidar com a culpa – se real ou não, se apenas sua ou compartilhada com os que não estavam por ela quando mais precisou – fará parte desse processo.

Ao longo dos 12 episódios da minissérie – a responsável pelo projeto afirma que não haverá uma segunda temporada – Arabella, acompanhada por seus dois melhores amigos, a atriz Terry (Weruche Opia) e o instrutor físico Kwame (Paapa Essiedu, de Gangs of London, 2020), precisará não apenas descobrir o que ocorreu na noite anterior – este está longe de ser um mistério no estilo whodunit, ou seja, que precisa apontar um culpado – mas, acima de tudo, encontrar a si mesma. Aqueles que poderiam ter lhe ajudar incorrerão nos próprios erros, enquanto que os parceiros de sempre também terão seus problemas com os quais lidar. O tema do abuso percorre o enredo das mais diversas formas, desde o mais óbvio e evidente até o não planejado, quase ao acaso, mas que não deixa de provocar suas consequências. Ao mesmo tempo, há um peso e uma medida para cada um desses casos, independente do que venham a gerar, seja nos diretamente envolvidos, como ainda nos que se encontram em posição de observadores, às vezes pela identificação, em outras por uma simples proximidade. De um jeito ou de outro, cada personagem terá seus desafios a serem superados, e esses estão longe de serem simples.

Arabella se vê em uma encruzilhada capaz de lhe levar aos mais diversos caminhos. Quem são seus reais amigos, qual sua ambição profissional, como lidar com pais e irmãos, que compromisso do dia seguinte lhe fará levantar da cama? Para ela, escolher a cor do cabelo é uma tarefa mais transformadora do que decidir com quem irá para cama, e essa é apenas uma das coisas que se vê tendo que assumir uma nova perspectiva. Do namorado italiano, que pode não ser exatamente quem pensa – e não por culpa dele, mas pelas expectativas que nele deposita – até o colega que deveria ajudá-la, mas acaba cometendo sua parcela de erros – e por isso terá que responder por esses atos – há ainda conflitos que fogem da sua responsabilidade. Terry está sempre disponível, mas a que preço? Como irá reagir ao sentir que sua posição pode estar ameaçada? E quando sua grande oportunidade, enfim, lhe aparece, serão suas atitudes que mostrarão qual passo dar a seguir. Da mesma forma, Kwame terá suas preocupações. Afinal, não representa apenas a visão masculina, mas também a de um homem gay. Nesse caso, terá o abuso outras formas, ou assume igual relevância? Inquietações que terão que resolver juntos, com muita troca, atritos e concessões. Porém, na hora derradeira, caberá a cada um como seguir em frente.

Se o que lhe foi imposto parecia demasiado, Arabella não está disposta a desistir. Sua rede de suporte, por mais aleatória que possa parecer, é suficiente para lhe garantir a segurança necessária. Há um livro a ser escrito, uma mensagem a ser transmitida, um trauma a ser superado. E, acima de tudo, uma lição a ser aprendida – e transmitida, como exemplo e escolha. De mudança e transformação. I May Destroy You, portanto, recai no condicional como definitivo de sua experiência. É possível, sim, ser deixado para trás, ser encerrado, ser acabado, eliminado. A decisão para tanto, como se vê, é individual. Assim como as consequências que acarreta. Em formato enxuto e absolutamente segura do que precisa ser dito, por mais que algumas vezes suas posturas soem um tanto radicais, este é uma história definitiva sobre a condição feminina, negra, periférica, emergente em pleno início de século XXI. Alguém que está cansado de ser deixado de lado. E que está apenas começando a tomar consciência do tanto que tem diante de si e que merece ser conquistado.

 

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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