Crítica


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Sinopse

Uma jovem menina de 18 anos que contou à polícia ter sido estuprada dentro de seu próprio apartamento, e depois voltou atrás em sua versão. O caso só pôde avançar, de fato, quando duas detetives do sexo feminino assumiram a liderança e compreenderam melhor o contexto da ocasião.

Crítica

Séries policiais existem aos borbotões por aí. São praticamente um gênero por si só. Então, como oferecer algo original dentro de um universo já tão congestionado? É justamente o que a minissérie Inacreditável se propõe: falar de uma investigação policial na qual os crimes em si são o que menos importam. Claro que são relevantes – afinal, sem eles, nada mais existiria. Mas não são um fim em si mesmos. Mais importante do que apenas descobrir o culpado ou suas motivações, que tal desviar o olhar, normalmente voltado para o agressor, e direcioná-lo à vítima? Que tal observar suas reações, o impacto daquela violência em sua vida e como tudo mudou após tal incidente? É uma mudança sutil, quase imperceptível, mas que termina por fazer toda a diferença. E por isso, o programa consegue se posicionar acima de um universo dentre tantas opções similares, elevando-se mais pelo que provoca enquanto reflexão e menos pelo que entrega mastigado em respostas que estão longe de serem simples ou óbvias.

O primeiro episódio de Inacreditável vai direto ao ponto, sem demoras: Marie Adler (uma incrível Kaitlyn Dever, que fala muito pouco mas expressa o bastante para aqueles que se interessarem pelo que seus olhos e postura corporal tem a dizer) está em casa, ao lado da mãe (Elizabeth Marvel, de Homeland, 2016-2018), esperando pela polícia. Quando essa chega, a denúncia é feita: no meio da noite, um homem invadiu seu apartamento e a estuprou. A garota está encolhida, fragilizada, temerosa pelo que precisa dizer, mas vai em diante. Aos poucos, no entanto, esse cenário vai sendo desconstruído. A mulher ao seu lado não é, exatamente, sua “mãe”. É uma mãe adotiva. Marie é órfã, e ao longo da sua curta vida já passou por diversas casas e famílias. O apartamento, também, não é seu. É uma casa que lhe foi concedida dentro de um programa de assistência social, e ela precisa cumprir certas regras para continuar recebendo essa ajuda. E os policiais que vão lhe atender – todos homens – parecem mais interessados no episódio em si do que nela. Diante de tantos constrangimentos, não é de se admirar que sua obstinação em fazer justiça, aos poucos, comece a esmorecer.

A partir do segundo dos oito episódios que compõem a minissérie (a princípio, não haverá uma segunda temporada – e nem deve, pois a história se encerra bem dentro do que é visto nesta leva), outras importantes personagens passam a dividir as atenções dos espectadores. Duas detetives, ambas trabalhando em casos isolados com vítimas de estupro. A primeira é Karen Duvall (Merritt Wever, mantendo com eficiência um limite preciso entre as crenças da personagem e suas obrigações profissionais), que é chamada para atender Amber (Danielle Macdonald, de Patti Cake$, 2017), uma estudante universitária que ao acordar, se deparou com um homem dentro do seu pequeno apartamento. Ele a amarrou, e apesar de tratá-la com cuidado e atenção durante o tempo em que esteve com ela, isso não o impediu de abusar dela sexualmente. E após, a obrigou a tomar banho, limpando qualquer vestígio de DNA que possa ter deixado para trás. Nesse momento, a audiência faz de imediato a conexão: os dois casos são similares. Mas além de se passarem em estados diferentes, há um outro agravante: Marie acabou negando a denúncia feita anteriormente, afirmando que tudo não teria passado de uma invenção sua.

Ninguém acredita em Marie. As famílias pelas quais passou começam a duvidar de suas declarações. Os conselheiros suspeitam do comportamento errático que demonstra. Os policiais encontram incongruências no testemunho. Após um detalhado exame hospitalar, não é identificado vestígios da agressão. Cansada de lutar, ela desiste. A questão, portanto, é essa: como alguém, em um lugar distante, poderia descrever até nos mínimos detalhes o mesmo tipo de violência? E as duas não são únicas. A policial Grace Rasmussen (Toni Collette, excelente na construção de um tipo sólido, porém dotado de camadas que aos poucos vão se revelando) também está no meio de outros casos bastante similares. E num outro distrito. Por mera obra do acaso, as duas oficiais acabam se encontrando e unindo forças. Desse momento em diante Inacreditável passa a ter duas linhas narrativas distintas: de um lado, o trabalho das investigadoras, as pistas descobertas, os becos sem saída em que vão se metendo, as hipóteses levantadas – e logo em seguida descartadas. Do outro, apenas Marie. Uma menina sozinha, desamparada, que aprendeu, às duras penas, que é melhor agredir do que ser agredida, mentir do que ser enganada, lutar com o que estiver ao seu alcance para conseguir sobreviver. E a questão que surge é essa: estaria ela, enfim, assumindo uma verdade, ou se refugiando mais uma vez em uma ilusão para conseguir se manter sã?

Justamente por todas essas dúvidas, o título do programa criado por Susannah Grant (indicada ao Oscar pelo roteiro de Erin Brockovich: Uma Mulher de Talento, 2000), Michael Chabon e Ayelet Waldman (ambos de Star Trek: Picard, 2020) é muito apropriado. Pois é natural que, diante do termo “inacreditável”, o espectador imagine logo algo incrível, surreal, impressionante, fantástico. Ou seja, extraordinário. Mas não é a isso que Inacreditável se refere. Fala-se de um conceito mais direto e objetivo: aquilo que não se acredita. Como o fato de uma jovem mulher fazer uma denúncia tão drástica e não ser levada a sério. Como policiais homens que ignoram as nuances de cada chamado ao atenderem mulheres vítimas desse tipo de violência. Como a sociedade, que segue tratando o estupro como um “crime menor”, justamente por ser uma agressão voltada majoritariamente à mulher, e não ao homem. Como um cara que consegue fazer diversas vítimas ao longo dos anos e em diferentes estados porque o sistema não está preparado para lidar com situações como essas. Como quem deveria ser cuidada pelo Estado, e por esse preparada para se integrar a uma realidade que não faz questão alguma de tê-la por perto, e que por isso a reprime e a rejeita a cada nova tentativa de se aproximar e se inserir.

Muitos dos méritos de Inacreditável estão ainda no formato como a minissérie vai se desenrolando, alternando protagonistas – Dever, Wever e Collette são cada uma a seu modo personagens principais de suas trajetórias individuais – e combinando elementos de uma trama com o desenrolar da outra. Até o sexto episódio, mal se tem ideia de quem pode ser o autor de tantos crimes, assim como a audiência só terá uma noção mais concreta da ligação entre uma narrativa e outra nos dois últimos capítulos. Ao inovar tanto na forma como no conteúdo, o programa acerta nos espectadores cativos, ao mesmo tempo em que agrega uma nova gama de interessados no tipo de reflexão aqui proposta. Um pequeno achado, que meio que passou longe do radar de muita gente, e que por isso merece ser descoberto e apreendido em cada um dos pequenos exemplos e ideias que esconde nos seus desdobramentos e conclusões.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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