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Sinopse

Issa e Molly podem ser fortes, mas precisam enfrentar muitos desafios pela frente. Por meio da amizade entre estas duas jovens negras, elas compartilham entre si o seu cotidiano, repleto de problemas e experiências desconfortáveis relacionadas à sua cor de pele.

Crítica

Desde o sucesso de Sex and the City (1998-2004), séries cômicas que discutem a realidade feminina se tornaram cada vez mais frequentes. Ao mesmo tempo, nos últimos anos o público consumidor desse tipo de conteúdo tem acompanhado o crescimento de programas com protagonistas negros, como Atlanta (2016-), Cara Gente Branca (2017-) e Ela Quer Tudo (2017-2019), entre outras. Insecure, criada e estrelada por Issa Rae, é nada mais do que a fusão destas duas correntes. Com o mérito, no entanto, de aliar aos diálogos francos da primeira e aos cenários usuais das demais o talento superlativo da protagonista, que comanda um elenco afinado que, além de possuir uma evidente sintonia em busca de um humor firme, ainda que não agressivo, sabe também como se posicionar diante de questões sérias, sem medo de fugir de respostas prontas e, muitas vezes, deixar perguntas no ar, dividindo a tarefa de partir em busca dessas soluções com o espectador. Ou seja, ao mesmo tempo em que demonstra respeito por sua audiência, também revela vontade de crescer em conjunto com seus personagens.

Issa Rae, que assina ainda o roteiro de grande parte dos oito episódios dessa primeira temporada, é Issa Dee, uma mulher independente tentando levar uma vida moderna em Los Angeles nessa segunda metade dos anos 2010. Acomodada na situação de conforto que construiu para si mesma, o espectador a encontra pela primeira vez no dia do seu vigésimo nono aniversário, quando percebe que é chegada a hora de agitar essa situação um tanto modorrenta. Afinal, mora há alguns anos com o namorado com quem há um bom tempo não demonstra a mesma sintonia do início da relação, trabalha em uma ONG de apoio a crianças da rede pública municipal que parece há muito ter abandonado seus objetivos originais e tem como melhor amiga Molly (Yvonne Orji, de Operação Supletivo: Agora Vai!, 2018), outra que demonstra estar em situação se não igual, talvez até pior. De uma forma ou de outra, e sem que cheguem ao ponto de estabelecerem um pacto formal de mudança, elas começarão, cada uma a seu modo, a transformarem suas vidas.

O ambiente profissional é um espaço determinante para as ações das duas amigas. Tanto Issa, quanto Molly, são praticamente as únicas pessoas negras em seus trabalhos. Em mais de uma ocasião, o espectador é convidado a confrontar suas próprias crenças quanto ao que pensa sobre racismo estrutural e preconceito reverso. Quando uma estagiária, também negra, é admitida no mesmo escritório de advocacia onde Molly trabalha, essa tenta se aproximar da novata para lhe dar umas dicas sobre como ‘sobreviver’ em ambiente inóspito. Essa, no entanto, as rechaça, afirmando, cheia de si, que “assim sou e assim seguirei sendo, quem quiser que me aceite desse jeito”. Quando o modo de ser da garota começa a incomodar os demais, todos brancos, ninguém tem coragem de lhe dizer a verdade – e é à Molly que precisam recorrer. Como essa irá se portar é não apenas um exemplo, mas também uma lição de conduta. Da mesma forma, quando Issa organiza uma festa de trabalho em um bairro predominantemente negro, seus colegas parecem não saber como agir, dependendo dela como se fosse uma ‘tradutora de comportamento’.

Se por um lado estas posturas apontam a problemas específicos, por outro também revelam uma consciência que nem sempre é tão clara. Basta observar a diversidade étnica nos ambientes tidos como neutros. Toda vez que os personagens principais vão a um restaurante, bar, boate ou mercado, estão invariavelmente cercados por negros como eles, como se vivessem em uma realidade alternativa. No entanto, quando se trata de uma obra estrelada por brancos, que parecem estar sempre entre brancos, ninguém demonstra qualquer tipo de estranhamento. É uma forma sutil, porém eficiente, de estimular uma discussão mais do que necessária. Da mesma forma, será apenas quando estão trabalhando que estas conjecturas se invertem. As condições, portanto, são realmente equilibradas? Como discutir meritocracia, quando uma raça inteira é colocada em uma situação de desvantagem antes mesmo do início da corrida?

A vida de Issa é dividida em três frentes: o namorado, o trabalho e as amigas. Se estas últimas oferecem um laço quase inquebrantável de união, que mesmo diante das mais duras provas irão resistir e se fortalecer, nas outras duas frentes os resultados serão inversos, tal qual diz o ditado: “sorte no jogo, azar no amor, e vice-versa”. Pois bem, Issa parece não se importar com o que está fazendo com sua carreira, menosprezando o alcance das suas ações, mas aos poucos vai reconquistando não apenas o espaço devido na organização, como também fazendo por merecer cada uma das suas vitórias. Sobra, portanto, para o relacionamento com Lawrence (Jay Ellis, servindo como contraponto eficiente para as atitudes impensadas da protagonista). Este, por mais que se esforce, nunca está à altura das expectativas da namorada. Algumas conjunções podem soar um tanto esquemáticas – a índole dele é reforçada pela resistência que demonstra diante dos avanços da moça do banco, ao mesmo tempo em que ela não consegue se portar da mesma forma quando um ex-paquera (Y’lan Noel, de A Primeira Noite de Crime, 2018) surge determinado a reconquistá-la – mas será na dinâmica do casal que muito do charme da trama irá se sustentar. Eles se merecem, ainda que estejam fadados a sofrerem por isso.

Tratando de sexo de maneira bastante franca e sem evitar questões relativas, como homossexualidade e o quão descartável são os envolvimentos iniciados através de aplicativos de relacionamentos, Insecure pode ser muitas coisas, menos insegura no que se propõe tanto a abordar quanto a discutir com propriedade e conhecimento de causa. Issa Rae é Issa Dee, e dificilmente encontrará uma personagem melhor para si do que aquela que ela própria criou – e que, por sua vez, é baseada na autobiografia The Misadventures of na Awkward Black Girl, lançada em 2015. Ela nem sempre acerta – aliás, está longe de ser perfeita – porém, entre reações exageradas (muitas das discussões com Molly se sustentam mais pelo nítido entrosamento das duas do que pelos argumentos um tanto forçados) e participações um limitadas (espera-se que duas outras amigas, Kelli, vivida por Natasha Rothwell, e Tiffany, interpretada por Amanda Seales, ganhem mais destaque nas temporadas seguintes), resta um seriado que cumpre com satisfação as promessas lançadas lá no episódio de estreia, mostrando não apenas que veio para ficar, mas também se levantar como diferencial dentro de um cenário tão congestionado de opções similares.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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