Crítica
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Sinopse
Anos 1990. Cristina, uma honesta e dedicada advogada, descobre que o irmão desaparecido há anos está, na verdade, preso por ser líder de uma facção criminosa. Ela então é obrigada pela polícia a trabalhar como informante. Mas, a medida que se infiltra na facção, a moça começa a questionar seus valores sobre a lei e a justiça.
Crítica
O imaginário do banditismo no audiovisual brasileiro tem se relacionado tanto à nossa capacidade de julgamento moral (opondo vilões a mocinhos, apoiando alguns personagens em detrimento de outros) quanto ao nosso distanciamento em relação àquele contexto. É conveniente aproveitar os prazeres de uma perseguição ou um tiroteio em português, envolvendo cidades brasileiras, mas que não aconteçam perto de nós. Em outras palavras, a classe média, a quem se destina o cinema em geral, não se sente afetada por uma situação verossímil, porém que não lhe diga respeito, e dentro da qual não possua, acredita-se, qualquer responsabilidade.
Este contexto se transforma, primeiro, com a chegada de Tropa de Elite (2007) nos cinemas, filme que busca compreender as origens da violência e a corrupção do sistema como um todo. A saga, em especial a continuação de 2010, foi adorada pelas razões erradas: enquanto os criadores e o ator principal buscavam desenhar um anti-herói, parte considerável do público enxergou no Capitão Nascimento um justiceiro exemplar, que mata bandidos por prazer. Segundo, a popularização das séries na televisão e nas plataformas de streaming permitiu que o gênero da ação à brasileira se multiplicasse, incluindo muitas versões de brigas nas favelas, confrontos entre gangues e retratos do impiedoso mundo criminal. Em diversos casos, retoma-se o maniqueísmo, seja aquele de policiais bem intencionados contra sangrentos bandidos, ou de pobres inocentes confrontados a uma força policial desumana.
Diante deste cenário, é com prazer que a série Irmandade vem embaralhar as peças novamente – seja elas do bem e do mal, do Estado contra o indivíduo, das relações de gênero, de raça e de classe social. O projeto da Netflix está menos preocupado em oferecer cenas voyeuristas de violência do que apresentar um complexo jogo de estratégias envolvendo poderes oficiais e extraoficiais. É possível compreender por que Edson (Seu Jorge) decide reunir os presos em torno de uma liderança local, para combater os abusos e torturas de que são vítimas diariamente. Em paralelo, compreende-se que o policial Andrade (Danilo Grangheia) lute contra a facção a qualquer custo, para controlar o poder na cadeia. É compreensível que Ivan (Lee Taylor) queira sair do grupo criminoso e apenas viver sua vida em paz, ao passo que o jovem Marcel (Wesley Guimarães), sem oportunidades profissionais e revoltado com a violência policial, sonhe em entrar para a facção.
Podemos (e devemos) questionar os métodos utilizados por todas essas pessoas, porém suas motivações são legítimas, envolvendo planos de sobrevivência a opressões distintas. A melhor ideia do projeto é escolher como protagonista não o líder da facção tampouco um dos policiais, e sim Cristina (Naruna Costa), advogada competente, de origem pobre, que descobre o paradeiro do irmão distante (Seu Jorge) quando ouve falar da facção Irmandade dentro da prisão. Para ajudá-lo, ela é obrigada a cometer algum pequeno delito – em nome de um bem maior, claro – e depois, um segundo delito para acobertar o primeiro, e em seguida, mais um para não descobrirem os anteriores. Quando percebe, a advogada se vê defendendo a Irmandade, para proteger não apenas o irmão, mas seu próprio disfarce. Conforme se aproxima das forças igualmente violentas do Estado e dos presidiários, Cristina não pode mais voltar atrás. Ela se surpreende cometendo os mesmos crimes que outros bandidos e, neste ponto, que diferença haveria entre ela e os demais homens da série? Eles não teriam começado pelo mesmo procedimento que Cristina, sendo cooptados por uma engrenagem maior do que eles?
O grande vilão desta narrativa, se podemos falar em algo do tipo, seria a falência do sistema de bem-estar social. As prisões estão superlotadas, os presos sofrem abusos frequentes, os policiais e carcereiros são mal pagos para executar uma profissão desgastante, os diretores dos presídios não se preocupam com direitos humanos. Assim, os presos se rebelam, os agentes penitenciários passam a aceitar suborno para deixar entrar drogas e armas na prisão, às vezes até fornecendo instrumentos para que os presos matem uns aos outros, e a direção da cadeia acredita que a melhor ferramenta de controle se encontra no aumento da violência. O sistema não se reforma, ele se intensifica, aprofundando os erros e oferecendo riscos a todos os envolvidos. Não por acaso, os oito episódios se constroem como uma panela de pressão, somando dilemas até a inevitável explosão rumo ao final.
Quanto ao título, ele faz questão não apenas à facção homônima, mas à trinca de irmãos composta por Edison, Cristina e Marcel, os três de idades e situações diferentes: um homem plenamente envolvido no crime, uma advogada avessa (inicialmente, pelo menos) a qualquer prática criminosa e um garoto para quem a ilegalidade oferece certo poder de sedução. De acordo com a nossa configuração tradicional e cristã, eles precisam se ajudar e se defender – afinal, são família -, mas o que fazer quando discordam radicalmente das ideias uns dos outros? O imperativo familiar força Cristina a ajudar o irmão violento, mas ironicamente, é esta boa vontade caridosa que a leva a se envolver no mundo do crime. Em última instância, pode-se dizer que a protagonista comete atos bárbaros movida por boas intenções, algo que provoca ruídos interessantíssimos em termos de moralidade e dramaturgia.
O roteiro da série é bastante competente, não apenas pela qualidade dos diálogos, mas pela construção dos personagens. Todos eles se transformam significativamente ao longo da primeira temporada, seja para terminarem num ponto radicalmente oposto àquele em que começaram (caso de Cristina, em sua própria trajetória Breaking Bad), seja para mudarem até voltarem ao ponto de início (Edison). Os casos amorosos, quando existem, são secundários para estas pessoas movidas por instinto de sobrevivência e/ou ideologia. Esse fator é particularmente bem-vindo numa série dotada de uma protagonista feminina, a quem não se precisa defender a suposta “delicadeza feminina” contra a brutalidade masculina, nem fragilizá-la pela descoberta do amor. Mesmo nas poucas cenas de sexo, os corpos masculinos e femininos são mostrados com igual respeito e mesmo grau de exposição da nudez, algo que certamente pode servir de exemplo para outras séries disponíveis atualmente.
No que diz respeito à direção e à produção, Irmandade oferece capítulos de alto nível, com cenas bastante verossímeis dentro da prisão e também nas casas onde os personagens se escondem. Embora privilegie os diálogos à ação, o ritmo é intenso, e cada silêncio carrega forte dose de tensão, por se inscrever em contexto de perigo iminente. Os episódios dirigidos por Aly Muritiba, experiente cineasta e ex-carcereiro, são os melhores dentro da temporada, por explorarem com precisão o espaço e a fluidez entre as cenas internas e externas. Já o primeiro e último episódios sofrem com algumas escolhas menos interessantes: flashbacks romantizados ou pesadelos óbvios para retratar o medo de Cristina (que não precisaria destes recursos para transmitir o pavor da situação em que se encontra), e o excesso de close-ups no episódio final, talvez o momento em que a série mais precisaria abrir o escopo e explorar espaços, para além de um ou outro plano aéreo em helicópteros.
De modo geral, a série surpreende pelo complexo jogo sociopolítico a respeito da criminalidade brasileira, assim como pelo grande elenco escolhido. Naruna Costa consegue trazer a mistura de candura e valentia necessária às cenas, e Seu Jorge possui o porte necessário para o líder de uma facção, mas os personagens coadjuvantes estão ainda mais fortemente representados por Hermila Guedes, Lee Taylor, Pedro Wagner, Danilo Grangheia e Tavinho Teixeira, todos ótimos em seus papéis. O final da temporada prefere não oferecer ambiguidades, o que talvez constitua uma fraqueza – sabe-se exatamente quem vive e quem morre, quem vai lutar contra quem e de que maneira o jogo de poderes continuará – mas ainda assim oferece uma rica galera rica de conflitos a serem explorados na segunda temporada.
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