Crítica


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Sinopse

Eve e Villanelle se aproximam de forma determinante. As fronteiras entre legalidade e contravenção ficam cada vez mais borradas. Casamentos são postos em xeque, missões complicadas precisam de reforços inusitados e uma atração ganha contornos fatais.

Crítica

A segunda temporada de Killing Eve é estruturada sobre a aproximação gradativa entre a legalidade e o submundo, atração análoga a de Eve (Sandra Oh) e Villanelle (Jodie Comer). Assim como fica difícil distinguir, em diversos momentos, a natureza das operações, pois métodos nada ortodoxos, pertinentes à marginalidade, são utilizados em favor de missões oficiais, não menos ardilosas, há uma indeterminação especialmente quanto a essa empenhada funcionária do MI6. No começo, a crise que a atravessa nesse processo de transformação diz respeito, basicamente, à probabilidade de ter matado a sua antagonista. Paralelamente, a assassina mais charmosa e perigosa do pedaço lança mão de seus estratagemas astuciosos a fim de sobreviver ao ferimento que beirou o fatal. O elo que as une fica crescentemente intenso, numa fusão entre pulsões violentas e amorosas. Há um erotismo latente mediando esse vínculo basilar à série, vide à forma lasciva da mercenária tocar o grave ferimento deixado pelo golpe da agente governamental, uma carícia sintomática.

Eve experimenta grandes novidades nesse instante em que a criminalidade, principalmente o gosto pela contravenção, se insurge no horizonte como possibilidade sedutora. Villanelle continua fazendo suas vítimas pelo caminho e a série aposta em doses consideráveis de ironia em torno dessa personagem, vide o episódio em que ela precisa se desvencilhar da brutalidade de quem lhe acolhe numa casa suspeita. O sujeito aparentemente inofensivo, por baixo da aparência de cordialidade, esconde impulsos de agressividade comparáveis aos da mulher que ele imagina indefesa. Já nesse instante a caçada da integrante do MI6, convencida definitivamente de que sua nêmeses sobreviveu à facada do último encontro, adquire contornos de preocupação e querer. Sim, pois ela não esconde a apreensão com relação à integridade física de quem deveria intentar colocar logo atrás das grades. A intensidade afeta determinantemente sua vida pessoal, abatendo-se sobre o casamento pretensamente inabalável. Nada mais importa, essa vontade corrói tudo ao redor.

Killing Eve continua esbanjando estilo na segunda temporada. Jodie Comer, intérprete da fascinante Villanelle, é o destaque da nova leva de episódios, ainda que a personagem de Sandra Oh passe por mais transformações. A assassina é performática, como na ótima armadilha ao condenado à morte que acaba sendo sangrado em público, diante dos olhares curiosos dos transeuntes na rua da prostituição em Amsterdã. O fato dela estar usando um vestido pomposo e uma máscara de porquinha é bastante coerente com o infantilismo temerário dessa figura absolutamente imprevisível. Divertindo-se obviamente com toda sorte de infortúnios alheios, essa temeridade faz o possível para tragar seu objeto de desejo, no caso Eve, ao mundo pelo qual a funcionária pública está incomodamente enfeitiçada, ainda que os códigos morais a obriguem a repudiar façanhas que intimamente a deixam bastante excitada. Essa proximidade de Eve com o universo de Villanelle é também vista nos acordos nebulosos estabelecidos entre certas instâncias supostamente inconciliáveis.

A Eve da primeira temporada é diferente da que vemos na segunda. A tragédia não a molda de forma óbvia, deixando-a mais fragilizada ou algo que o valha. Pelo contrário. A insólita afinidade por Villanelle é algo que, embora não consumada, adquire constantemente contornos de cobiça carnal. Sandra Oh e Jodie Comer trabalham excepcionalmente juntas, construindo personagens de voltagens bem singulares, mas ajuntadas por esse querer intensificado pelo medo. De alguma maneira espelhando essa relação, está a de Carolyn (Fiona Shaw) e Konstantin (Kim Bodnia), representantes das esferas mais altas de organizações que jogam ao seu bel prazer com as protagonistas, como se elas fossem peças imprescindíveis, mas altamente descartáveis, de um jogo geopolítico cujas regras são completamente mutáveis de acordo com a necessidade da ocasião ou da missão a ser resolvida. No fim da segunda temporada, esse acordo se apresenta em toda a sua estratégia torpe.

Killing Eve mantém aquele clima de espionagem romântica da primeira temporada, mas adiciona complexidade psicológica ao molho temperado com sangue e animosidades acobertando desejos físicos e afetivos. A previsibilidade dos últimos minutos do oitavo e derradeiro episódio não é problemática, pelo contrário, porque está atrelada ao desfecho similar do ano anterior e, portanto, é totalmente funcional, inclusive para colocar ponto final num ciclo e vislumbrar o próximo. Se antes Eve descartava qualquer envolvimento factual com a mulher que lhe intrigava, adiante adquirindo contornos de obsessão, a quase cessão às pretensões interditadas pelas convenções sociais fornece caminhos diferentes. Há menos coadjuvantes na segunda temporada, uns beirando a figuração, porque importante mesmo é esse borrar consistente das fronteiras entre certo e errado, sendo a subversão das regras um instrumento à disposição de todos. Resta saber o que os produtores reservam ao terceiro ano. Ótimas possibilidades não faltam à vista.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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