Crítica


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Sinopse

Oito habilidosos ladrões se trancam na Casa da Moeda da Espanha com o ambicioso plano de realizar o maior roubo da história e levar com eles mais de 2 bilhões de euros. Para isso, a gangue precisa lidar com as dezenas de pessoas que manteve como refém, além dos agentes da força de elite da polícia, que farão de tudo para que a investida dos criminosos fracasse.

Crítica

La Casa de Papel poderia muito bem ter sido escrita por Dan Brown, autor de O Código Da Vinci (2006) e Anjos e Demônios  (2009). Assim como nos livros do escritor estadunidense, acompanhamos aqui uma série de eventos curtos e tensos que deixam o espectador (ou leitor) curioso para saber o que acontece em seguida – aquela personagem foi executada mesmo? A polícia vai encontrar o esconderijo do ladrão na próxima cena? O que será que Raquel descobriu numa gravação? Os ganchos não existem apenas ao final de cada episódio, mas praticamente a cada mudança de cena – o que remete bastante aos capítulos minúsculos de Brown e sua mania de fechá-los com uma incógnita.

Entretanto, esta tática acarreta numa demanda absurda de criatividade para gerar situações que continuem se superando ou mantendo o nível de choque causado pela cena anterior – e ninguém há de acusar a série de não ser inventiva. Mas é aí que La Casa de Papel começa a partilhar também de um dos principais problemas das narrativas de Dan Brown: a implausibilidade. Não que “ser plausível” seja um pré-requisito indispensável a todas as obras, mas o absurdo simplesmente não casa muito bem com tom de thriller policial estabelecido pela linguagem da série – a fotografia escura, a trilha pesada e os próprios ganchos que, para funcionar, exigem que o espectador leve tudo aquilo muito a sério.

Tarefa que vai se tornando exponencialmente mais difícil. A trama gira em torno desse assalto à Casa da Moeda espanhola, em Madri, onde a quadrilha mantém mais de 60 reféns enquanto usa o maquinário para fabricar o próprio dinheiro. O plano todo é orquestrado por um homem que se alcunha Professor (Álvaro Morte), líder de uma gangue que ainda inclui o maldoso Berlim (Pedro Alonso), o ingênuo Rio (Miguel Herrán) e Tóquio (Úrsula Corberó), que, apesar de limitada pela situação de sítio do grupo, é também inexplicavelmente (até agora) a narradora onisciente da narrativa. O atrativo principal, portanto, é convertido na expectativa de descobrir qual a jogada “genial” que os Dalís (os assaltantes usam máscaras de Salvador Dalí) planejaram para antecipar cada movimento da polícia e dos negociadores.

Aí entra a figura central do Professor, arquiteto da p*rra toda, um Blofeld dos assaltos, um Lex Luthor dos sequestros. Ou essa é a ideia que La Casa de Papel quer que o espectador compre, uma vez que, apesar de conseguir antecipar com precisão cada passo dos negociadores, o chefe do grupo volta e meia depende da pura sorte para que seus estratagemas funcionem – ufa, ainda bem que aqueles policiais não o viram entrar na viatura, e que o cachorro do ferro velho não o dilacerou, e que o confundiram com um mendigo, e que a caixa de mensagens de Raquel (Itziar Ituño) ficou lotada e por aí vai. Mas tudo bem, o seriado não nega esse viés puxado da teledramaturgia, com situações exageradas, dramáticas, recheadas por atuações sempre no modo overacting.

Tem até certo charme quando Berlim (de longe o mais canastrão e, ainda assim, o mais interessante dos personagens) começa a recitar outro de seus discursos preparados enquanto persegue uma vítima, ou quando Tóquio desata a explicar bem mastigadinho mais um plano do Professor. Sem contar as típicas incoerências internas que se acumulam sobre uma narrativa que pretende ser simultaneamente inventiva a todo momento e imutável do ponto de vista de evolução das relações entre os personagens – o que acontece muito nas novelas para que, mesmo quem perdeu um punhado de capítulos possa continuar entendendo a história de qualquer outro ponto adiante. Daí numa hora estão se apontando armas e se ameaçando, confabulando execuções e trairagens, mas, no outro, se abraçam e cantam juntos como um time de futebol que acabou de ganhar um campeonato.

E de novo, isso por si só não é um problema. Ora, Lost (2004-2010) é uma obra-prima narrativa e, na sua própria época, seguia diretrizes parecidas com as da teledramaturgia também – mas o tom e a construção eram bem mais rigorosos, o que no geral é o maior pecado de La Casa de Papel. Não por falta de tentativa, é preciso conceder o mérito do esforço, mas Álex Pina, o criador da série, parece entender mais sobre o que deveria fazer do que como fazer. Por exemplo, cada personagem ganha, de fato, um momento para se abrir e falar de si mesmo, o que é um bom recurso para desenvolvê-los, a não ser que você encaixe esses monólogos, de forma burocrática, em qualquer espaço, sem criar a atmosfera do antes e nem do depois – recorrentemente, um desses desabafos é precedido e sequenciado por uma cena mais barulhenta de ação. Mas o que parece importar a Pina é ir na sua planilha do Excel, achar a linha Personagem Tal e marcar “check” na coluna “desenvolvimento”. 

Outro exemplo do quão raso é o esforço narrativo da série está no modo como constantemente desperdiça boas pautas. Porque, apesar de bater várias vezes na tecla da representação feminina e da disputa desleal de poderes entre homens e mulheres, o roteiro dá a impressão de que insere esses tópicos para angariar likes. Do mesmo modo, a orientação sexual de um dos assaltantes é revelada de forma oportuna, quase como se apenas isso fosse suficiente para classificar a obra na categoria LGBTQ.

Além disso, é preciso ressaltar que esta primeira temporada tinha menos episódios e que estes tinham uma duração bem maior. Foi a Netflix que remontou os capítulos e os dividiu em maior número e com uma duração individual menor quando adquiriu os direitos de distribuição – uma conduta covarde do ponto de vista artístico, já que claramente visa atender a demanda da plataforma, cujo modelo de negócios depende do usuário passar o maior tempo possível conectado, o que seria desencorajado por durações muito longas. O problema para La Casa de Papel é que aparentemente esse picoteamento não fez diferença alguma – o que só comprova que o roteiro foi pensado como um entretenimento vazio e novelesco, e não como narrativa artística e cinemática, já que há pontos de entrada e saída de atenção a todo instante.

Corta um episódio de Lost no meio pra ver se funciona…

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é formado em Produção Audiovisual pela PUCRS, é crítico e comentarista de cinema - e eventualmente escritor, no blog “Classe de Cinema” (classedecinema.blogspot.com.br). Fascinado por História e consumidor voraz de literatura (incluindo HQ’s!), jornalismo, filmes, seriados e arte em geral.
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