Crítica


9

Leitores


2 votos 9

Sinopse

Aparentemente, os Richardson formam uma família perfeita. Todavia, segredos e outros elementos de potencial incendiário, tais como segredos bem guardados, vão ser colocados em xeque com a chegada de uma inquilina.

Crítica

A imagem do fogo constitui o ponto de partida desta série. O belo casarão de Elena Richardson (Reese Witherspoon), símbolo da família perfeita, está completamente destruído pelas chamas. Sabemos desde o princípio que se trata de um incêndio criminoso. No entanto, o rosto de Elena, mulher bastante apegada ao lar, não demonstra surpresa. Os oito episódios tratarão de elucidar o mistério por traz do fogo, mas também da inesperada expressão da protagonista. Seguem-se então diversos fogos, tanto literais (obras de arte em chamas, pedidos de desculpa em chamas, performances artísticas onde o fogo é incorporado ao processo) quanto simbólicos (os minúsculos conflitos plantados cena após cena, que se desenvolvem, se entrecruzam e culminam na prometida catarse. Ainda que efetue idas e vindas no tempo, e que trabalhe duas histórias em paralelo – a de Elena, jornalista frustrada, e a de Mia Warren (Kerry Washington), artista em dificuldades financeiras, sem residência fixa -, a temporada sustenta a impressão de uma narrativa em progressão gradativa. Os elementos se revelam, se ampliam, e o dilema de um personagem inevitavelmente afetará o dilema do outro.

Little Fires Everywhere se articula com tamanha precisão que o encontro entre as duas mulheres aparentemente opostas – uma branca, outra negra; uma rica, outra pobre; uma conservadora, a outra progressista – se assemelha a um golpe irônico do destino. O único elemento permitindo unir as protagonistas constitui a maternidade. Ambas são mães de adolescentes, e ambas carregam traumas relacionados a gestações, algo que só compreendemos por completo ao longo da narrativa. Quando uma terceira mãe irrompe na trama, Bebe Chow (Lu Huang), jovem garçonete que abandona a bebê recém-nascida e depois tenta reconquistá-la, ambas se envolvem no caso – uma a favor, a outra, contra – de maneira a expurgar suas próprias dores. A série oferece um retrato amargo e realista das mulheres a quem cabem todas as pressões econômicas, financeiras e afetivas, a quem se controla o corpo, se exige a gravidez ou se proíbe a interrupção da mesma. Dentro desta série, Bebe Chow se torna um símbolo, um estopim para que ambas sejam confrontadas a conflitos recalcados. O fogo também representa a explosão das duas mulheres quando se identificam com a controversa imigrante chinesa. A mãe solteira, a mãe adotiva, a mãe de família numerosa e a mãe de aluguel são dispostas no mesmo tabuleiro de jogo.

Além desta questão, o texto baseado na obra de Celeste Ng desenha um riquíssimo mosaico do racismo nos Estados Unidos. Seria fácil confrontar a pobre mulher negra a uma adversária grosseiramente preconceituosa, mas não há aqui nenhuma Hilly Holbrook (Bryce Dallas Howard em Histórias Cruzadas, 2011) para se transformar em representação exemplar do racismo. O problema de personagens estereotipadas se encontra no fato de não constituírem pessoas verossímeis, o que prejudica o processo de identificação. Perto de figuras como Hilly, qualquer um se sente tolerante, o que serve para apaziguar consciências raciais ao invés de provocar reflexão. Ora, Elena constitui uma mulher de discurso progressista, cuja filha mais velha namora um rapaz negro, e que faz questão de ajudar Mia quando a forasteira se encontra em posição de dificuldade. Elena intervém quando Pearl (Lexi Underwood), filha de Mia, é vítima de racismo na escola. Vista de fora, Elena seria uma amiga e mãe perfeita, mas o roteiro trata de fazer com que o verniz de cordialidade da burguesia se desfaça lentamente, sem introduzir qualquer revelação brutal contra as duas protagonistas. A fotógrafa e escultora terá ótimos momentos de confronto com as filhas da amiga-adversária, explicitando um racismo insidioso, muito além da superfície.

A série ainda demonstra a perspicácia de efetuar uma troca simbólica de filhas: enquanto os “pequenos fogos” se espalham pela cidade e pela narrativa, Mia se torna cada vez mais próxima da filha do meio de Elena, Izzy (Megan Scott), uma artista em desenvolvimento, enquanto Pearl, sem compreender as escolhas de vida da mãe, aproxima-se do universo meritocrático de Elena. O conflito de gerações é bem desenhado pela oposição das adolescentes às figuras maternas. Vale ressaltar que esta é uma série feminina, dirigida, escrita e produzidas por mulheres, e com mulheres nos papéis principais. Enquanto isso, os pais das crianças, maridos ou namorados estão ausentes, literal ou simbolicamente. Conforme Mia e Elena são colocadas frente a frente, numa espécie de espelho deformante (uma representando o oposto do que a outra sonha para si mesma), elas precisam enfrentar todas as instituições sociais que as prendem na posição onde se encontram: a família, a escola, a religião, a polícia. Os fogos se tornam também uma fagulha de rebelião. É impressionante a maneira como a criadora Lynn Shelton, diretora de metade dos episódios, e falecida em maio de 2020, desenvolve a contento a psicologia de cerca de doze personagens diferentes.

Além disso, o projeto conquista a rara proeza de colocar o espectador em posição onisciente e cúmplice, ou seja, enquanto observador distanciado testemunhando o comportamento de pequenos ratos de laboratório. Para quem enxerga de fora, a exemplo dos bombeiros diante da casa destruída, não haveria qualquer motivo para a estrutura familiar ruir. Para o espectador, presenciando os conflitos pessoais de Mia, Elena, Pearl, Izzy, Bill (Joshua Jackson), Linda (Rosemarie DeWitt), Lexie (Jade Pettyjohn), Moody (Gavin Lewis) e Trip (Jordan Elsass), havia motivos de sobra para os desejos de (auto)destruição. Séries sobre conflitos raciais correm o risco de instrumentalizar a protagonista (ou seja, desenvolvê-la em profundidade enquanto relega aos demais uma construção superficial e acessória), ou de torná-la um caso especial (a mulher que mais sofre, aquela mais injustiçada, a mais incompreendida). Ora, Shelton e Celeste Ng possuem o refinamento necessário para sugerirem que o choque entre Elena e Mia não constitui um caso isolado, apenas um embate que deve se reproduzir em igual intensidade nas outras casas padronizadas do subúrbio norte-americano. Ao mesmo tempo, não existem maniqueísmos: somos convidados a compreender o ponto de vista de cada um dos personagens, mesmo que discordemos de suas ações.

No cinema, os roteiros de Asghar Farhadi se tornaram conhecidos pelo emaranhado sociológico, onde a felicidade de um personagem necessariamente implica na tristeza de outro, e o sucesso de provoca a ruína alheia. A série norte-americana representa um dos melhores exemplos desta delicada tapeçaria, transposta aos Estados Unidos. Nenhuma tragédia provém do exterior dos personagens, de maneira artificial (doenças, acidentes, chegada de pessoas inesperadas), e sim do interior (segredos, mentiras, mal-entendidos). Cada personagem carrega dentro de si os conflitos necessários para sustentar uma temporada inteira. Trata-se de um olhar psicológico ímpar, cujo sucesso depende bastante do trabalho do elenco. Neste sentido, Reese Witherspoon e Kerry Washington se saem muitíssimo bem em seus papéis. A primeira saberia ridicularizar ou vilanizar a figura da mulher rica se necessário (vide Legalmente Loira, 2001, e Big Little Lies, 2017-2019), mas oferece uma composição rica em nuances. Ela sugere em falas e gestos mínimos as hipocrisias da mulher capaz de admitir seus privilégios sociais, embora os interprete como direitos quando lhe convém. Já a segunda compõe uma personagem que esconde segredos maiores, necessitando transmitir constante sensação de desconforto e angústia, além de uma raiva represada prestes a explodir. Ambas navegam bem tanto pelo silêncio quanto pela riqueza dos diálogos.

Os demais atores, fundamentais para comporem as duas células familiares, apresentam trabalhos igualmente satisfatórios, com destaque para Megan Stott, no papel da garota que pretende fazer política sem saber como, e para Lexi Underwood, cujo corpo e identidade constituem um posicionamento político em si – ela é uma das únicas garotas negras numa escola privilegiada -, sem percebê-lo. Little Fires Everywhere pode ser lido enquanto história sobre a perda da inocência: os jovens precisam descobrir o difícil funcionamento do mundo adulto, ao passo que Elena descobre os limites de sua boa vontade cristã e Mia se confronta à ojeriza pelo patriarcado. O projeto transparece uma direção coesa, apesar de ter três cineastas diferentes na condução dos episódios. Sem pretensões estetizantes, consegue trabalhar tanto as sugestões em imagem e os silêncios nos rostos das atrizes quanto os instantes de brigas e revelações. A aparência de elegância, com luzes bem cuidadas dentro das casas, movimentos discretos de câmera e trilha sonora pontual correspondem ao universo codificado dos dois estratos sociais. A casa de Mia, inacabada e em constante transformação, corresponde à psique das duas mulheres que ali vivem, enquanto o acabamento impecável da casa de Elena representa o mundo das aparências.

A conclusão, quanto os fios soltos do passado se atam, talvez pese a mão em algumas metáforas (o pássaro, a pluma, a escultura), porém converte a narrativa em ponto de virada para os personagens: nenhum deles será como antes. Ao invés de nos apresentar a uma história sobre problemas e caminhar para a solução, a narrativa propõe o caminho oposto, começando na aparente paz e semeando o caos. O renascimento, no caso, não provém de uma conciliação entre diferenças – este não é Green Book: O Guia, 2018, solicitando que os lados opostos deem as mãos e se abracem no final -, e sim da constatação sobre a impossibilidade de fazer as pazes. A direção prefere que sua história se imploda, espalhando cacos por todos os lados, rompendo estruturas sólidas e desfazendo uniões. É preciso coragem, tanto na televisão quanto na literatura, para conduzir os espectadores através de uma longa jornada rumo a uma conclusão amarga. Entretanto, para as criadoras desta história, esta seria uma forma de otimismo muito mais provocadora e politicamente questionadora. Shelton e Celete Ng, assim como suas protagonistas, terminam por observar as ruínas de uma estrutura em chamas com um curioso sentimento de satisfação e alívio.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
avatar
Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
avatar

Últimos artigos deBruno Carmelo (Ver Tudo)