Crítica


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Sinopse

Uma perspectiva diferente sobre a história real de Lorena Bobbitt, uma mulher que foi a julgamento após castrar o próprio marido. O caso aconteceu em 1993 e repercutiu no mundo inteiro, com jornais e tabloides internacionais cobrindo os acontecimentos 24 horas por dia. No dia do incidente, John Wayne Bobbitt teria chegado bêbado em casa e estuprado Lorena. Em um momento de surto, ela acabou decepando o pênis do esposo com uma faca, mas foi inocentada por estar fora de si.

Crítica

Minissérie documental com quatro episódios, produzida por Jordan Peele (Corra!, 2017), Lorena traz novamente à tona um caso de violências que se tornou absurdamente midiatizado nos anos 90 nos Estados Unidos. A equatoriana Lorena Bobbitt amputou o pênis de seu marido, John Wayne Bobbitt, alegando posteriormente que o ato foi motivado por uma sucessão de brutalidades prévias no âmago do seu lar. No decurso da trama, urdida com muita perspicácia pelo cineasta Joshua Rofé, prevalece a relevância do resgate, uma vez que, embora fale de um episódio específico, ele propicia debates em torno de questões e demandas atuais, algumas infelizmente corriqueiras, como a violência doméstica que vitima milhares de mulheres diariamente. Outro ponto que adensa o recorte é a discussão paulatina acerca da discrepância entre os posicionamentos masculinos e femininos diante de ocorrências potencialmente motivadas por um abismo de gênero ainda existente. De um lado, privilégios patriarcais condicionam leituras hoje não mais aceitas sem resistência. De outro, as oprimidas que se rebelam finalmente, assumindo o protagonismo de suas vidas.

O primeiro episódio de Lorena, intitulado Aquela Noite, é empenhado em oferecer um painel amplo da noite de junho de 1993 que culminou com o membro de John extirpado e uma verdadeira batalha das equipes encarregadas contra o tempo. Todavia, não é somente a acuidade descritiva que sobressai nessa parte, mas a forma inteligente de entrecruzar o vasto material de arquivo à disposição com os depoimentos colhidos na atualidade, inclusive os do ex-casal. É perceptível uma pegada mais jornalística aqui, a atenção aos fatos, a disposição de elementos que auxiliam na montagem de um quebra-cabeça complexo. Assim, de cara, o realizador oferece indícios quase friamente, não pendendo para qualquer dos lados reclamantes. O sujeito continua reivindicando a condição de vítima, pois teve seu sexo decepado. A anteriormente esposa, por sua vez, alega que a atitude extrema foi impulsionada por um desespero de proporções absurdas, porque que era constantemente estuprada no âmbito doméstico, algo difícil de criminalizar naquele momento estadunidense.

Já em Uma Mulher em Apuros, a minissérie começa a desenhar um percurso obviamente empenhado em mostrar Lorena como a maior sofredora. Porém, Joshua Rofé não se furta de mostrar como ela acabou seduzida para o centro de um redemoinho midiático que transformou em espetáculo a tragédia anunciada pelos vários boletins de ocorrência que davam conta de agressões maritais precedentes. A dúvida quanto à sinceridade dos cônjuges é inteligentemente trabalhada durante esse processo de apuração minucioso, que passa a nutrir dados e sinais objetivos com uma leitura social imprescindível. Comediantes fizeram graça com a desgraça alheia, a mutilação ganhou mais visibilidade e, por conseguinte, importância que as denúncias de violação sexual e ataques físicos. Numa sociedade falocêntrica e guiada por ditames absolutamente masculinos, a perda do falo, desse símbolo de poder, é bastante sintomática. Isso o programa ressalta por meio das exposições diretas, especialmente de mulheres constatando tal cenário que aponta a uma estrutura torpe.

Na medida em que mergulha na história, revelando bastidores do julgamento, Um Impulso Irresistível, o terceiro episódio, lança luz sobre os meandros jurídicos levados em consideração por promotoria e defesa e, ao mesmo tempo, observa criticamente o circo montado para cobrir os trâmites, não raro de maneira totalmente sensacionalista. Estratégias de ambos os lados são desveladas na atualidade por seus principais articuladores, e esse trajeto permite uma compreensão mais clara dos desfechos inesperados de ambos os processos – sim, pois John foi indiciado por agressão, se tonando também réu. Essa narrativa de tribunal, articulada habilmente, prossegue e ganha novos contornos na quarta parte, O Ciclo de Abuso, quando abertamente Lorena passa a encarar o marido como um exemplo de comportamento inaceitável, trazendo à baila uma série de outras acusações que recaíram sobre seus ombros após o embate com Lorena, a maioria dizendo respeito novamente ao vilipêndio físico do corpo de suas companheiras, isso sem os contar os abusos verbais.

Joshua Rofé lança mão, em praticamente todo o desenvolvimento de Lorena, de pequenos excertos dramatizados que servem de projeção, dispositivo funcional e sutil que recorrentemente ilustra as rememorações dolorosas das testemunhas. Em determinado ponto, ele se debruça sobre o fato de que Lorena era uma imigrante latino-americana em busca de vida nova na chamada terra das oportunidades. Esse dado estabelece uma ponte expressiva com a contemporaneidade, especialmente a regida pela mão de ferro (e um bom bocado destrambelhada) de Donald Trump, cuja cruzada contra estrangeiros é pública e notória. Aliás, o nome do presidente norte-americano aparece nas placas da motocicleta e do automóvel de John, assim criando uma camada simbólica considerável. O acusado, condenado por suas atitudes misóginas e indiciosas de seu pensamento, pode ser lido como uma espécie de representante do eleitor de Trump, o “cidadão de bem” que tem verdadeira ojeriza de mudanças sociais e processos que visem equidade e perda de privilégios.

Lorena toma um partido sem negar as minúcias, tampouco apontando “monstros” e incorrendo em maniqueísmo. Lorena e John Wayne – o fato dele ser homônimo de um símbolo cinematográfico de virilidade não passa incólume à atenção do cineasta – cometeram crimes, foram absolvidos, mas isso não significa que sejam estritamente inocentes. A minissérie assume gradativa e abertamente o lado de Lorena, uma vez que sua razão de ser é justamente essa leitura renovada dos fatos, sobretudo a partir da constatação da sujeição feminina à força secular do patriarcado legitimado enquanto detentor de poder. Para isso aborda acontecimentos indicativos, vide a sanha de John por celebridade após o desfecho legal. Ele atuou em filmes pornográficos, trabalhou como leão-de-chácara de uma casa de prostituição, fez cirurgias para aumento peniano que deixaram seu membro deformado, apareceu em programas televisivos de gosto duvidoso, tudo, pois embriagado pela fama. As supracitadas dramatizações ajudam a contar essa história repleta de sinais da aceitação dos efeitos colaterais de uma masculinidade tóxica e da luta feminina por respeito e dignidade.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.