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Sinopse

Para perseguir o sonho de ser cantora, Cassandra precisa abandonar sua cidade natal. Mas, tudo muda quando a ex-namorada dessa mulher trans reaparece anunciado que ambos têm um filho.

Crítica

Manhãs de Setembro (2021) é estrelado por uma mulher transexual, embora sua identidade de gênero não represente um conflito central na história. A série inclui casais gays idosos e adolescentes lésbicas, porém a orientação sexual tampouco constitui um motor de conflito. Há ladrões e contrabandistas, ainda que a criminalidade esteja longe do foco principal. O projeto possui méritos tanto pelos temas problematizados quanto por aqueles não-problematizados. A direção enxerga o cotidiano de pessoas negras, trans e em situação de rua sem o filtro do espetáculo: nota-se um olhar de cumplicidade fundamental. Os criadores evitam descrever este universo pela perspectiva da surpresa diante de uma realidade diferente daquela do público médio. Em paralelo, fogem à cautionary tale: contrariamente às narrativas alarmantes, de fundo moralista (“Olha o que acontecerá a você caso siga por o caminho diferente das normas”), observa estas subjetividades com notável naturalismo. Os personagens são observados de perto, à altura dos olhos. A história se desenvolve com eles, ao invés de sobre eles – em outras palavras, tornam-se sujeitos, mais do que objetos de estudo.

A escolha de Liniker para o papel principal implica numa bela ousadia. A cantora possui evidentes dotes vocais, mas sua capacidade de sustentar um projeto na condição de protagonista despertava dúvidas. Ela se entrega com comprometimento, numa interpretação coesa decorrente do trabalho eficaz de preparação da atriz - caso em que a elaboração crua de corpo, voz e expressões serve aos propósitos da direção. A fala menos articulada e o corpo mais rígido em comparação aos colegas de elenco condizem com o mergulho num cotidiano cru, sem embelezamentos, enquanto o jogo com atores experientes (sobretudo a excelente Karine Teles) provoca um terreno fértil para criar volume na encenação. Os cinco episódios transparecem rica dinâmica cênica: Cassandra (Liniker), de aparência casmurra e combativa, responde aos sorrisos malandros, reflexo de um otimismo quase desesperado de Leide (Karine Teles), em oposição à timidez afetuosa de Ivanildo (Thomás Aquino) e à rebeldia controlada do pequeno Gerson (Gustavo Coelho). Este mosaico apresenta formas diferentes de falar, se mover, agir, se expressar. Estamos próximos de uma representação ampla da diversidade social, dentro dos limites permitidos a uma série de curta duração.

Outro mérito se encontra no cuidado com a construção dos coadjuvantes. Uma quantidade expressiva de séries brasileiras faz com que as figuras ao redor se limitem a dar a réplica à protagonista, incentivando ou atenuando os conflitos dela. Em Manhãs de Setembro, o roteiro se dedica a acompanhar pelo menos meia dúzia de figuras com dilemas próprios, em seus locais de trabalho e estudo, por exemplo, em situações dissociadas daquela de Cassandra. Os personagens não esperam o “Ação” dos diretores para existirem: mesmo quando se encontram fora de cena, sabemos onde estão, e provavelmente o que fazem. O texto de Josefina Trotta, Alice Marcone e Marcelo Montenegro demonstra impressionante habilidade em equilibrar diferentes focos, sem perder Cassandra de vista, nem instrumentalizar os amigos e amores da heroína – eles jamais poderiam ser reduzidos a “ex-namorada”, “o melhor amigo” e assim por diante, por terem desenvolvido relações mais complexas com a cantora. Ninguém se converte em vítima digna de piedade, algoz perverso ou guerreiro capaz de superar a situação adversa pela força de vontade. Felizmente, a trama se encerra sem lições de vida.

O discurso humanista permite compreender com empatia as atitudes de cada um, incluindo as mais controversas ou irracionais. Há igual espaço para decisões de sobrevivência e para pulsões e desejos – como poderíamos julgar a mãe que, descrente na possibilidade de conseguir um emprego devido ao magro currículo, abandona a fila de inscrições para se encontrar com um pretendente? Ela não teria igual direito de encontrar o amor, o prazer, o gozo? A razão se mistura aos sentimentos de maneira plausível, porque desequilibrada – eles possuem falhas a exemplo de qualquer um de nós. Os diretores Luís Pinheiro e Dainara Toffoli correm o risco de perder a adesão do espectador ao desenharem uma protagonista grosseira e mal-humorada, uma ex-parceira desonesta, uma colega de trabalho descrente na carreira da cantora. No entanto, essas subversões ao romantismo da redenção pessoal proporcionam os melhores momentos: a meritocracia, o renascimento pela tragédia e o aprendizado através da dor passam longe desta jornada cotidiana. Os personagens são acompanhados em dias quaisquer, ao invés de seguidos durante algum parêntese de seus percursos. A chegada do menino Gerson na vida da protagonista constitui uma surpresa, sem dúvida, porém sabemos que a cantora atravessa sucessivos obstáculos, razão pela qual a criança é acolhida sem comoção, transformando-se num problema a mais para resolver.

Além da complexidade psicológica e sociológica, Manhãs de Setembro impressiona pelo ótimo trabalho de direção de fotografia. O centro de São Paulo, com seus prédios infinitos, viadutos e cortiços ganha um retrato ponderado – nem sanitizado para soar mais agradável aos olhos, nem enfeado para ressaltar a miséria. Os dias são brancos, cansativos, repletos de amizades singelas e pequenas agressões cotidianas (a atendente sugerindo que Cassandra é “quase uma mulher de verdade”). Já as noites possuem impecável trabalho de luz, tanto pelas ruas quanto dentro do bar onde a artista se apresenta esporadicamente. O diálogo simbólico com a cantora Vanusa se revela discreto e eficaz, sem romper com o realismo em virtude do recurso fantástico. A montagem imprime bom ritmo, permitindo contemplações sem deixar a trama arrastada, ao passo que o impecável trabalho de som transmite a pluralidade de barulhos, ruídos e vozes de uma quitinete no centro de São Paulo. A cidade se torna uma personagem nem particularmente acolhedora, nem inóspita, apenas massificante. O texto aponta para uma conclusão otimista, ainda que recuse a resolução mágica dos conflitos. Caso tenha a oportunidade de continuar numa segunda temporada, aponta os claros rumos por onde a história seguiria. Caso se encerre neste curto percurso, terá oferecido uma poética conclusão aberta, suficiente para encerrar o percurso de seus protagonistas.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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