Crítica


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Sinopse

Midge se encontra numa encruzilhada. Ao ser admitida como roteirista de um popular programa de TV, ela alimenta o desejo de ser convidada para aparecer diante das câmeras a fim de apresentar ao mundo o seu enorme talento.

Crítica

Comumente, as séries televisivas de sucesso têm várias temporadas. Sim, começamos por aqui com uma sentença óbvia, porém ambígua, já que essa continuidade nem sempre é positiva. Adoramos ver mais de personagens que aprendemos a amar, mas em muitos casos os criadores passam do ponto e continuam gerando histórias apesar da escassez de ideias, seguindo em frente ao apostar na condescendência do público cativo considerado ganho e dócil. Apenas ao ler essa breve introdução você deve ter se lembrado de alguns programas excepcionais no início, mas que foram definhando por conta de repetições, escolhas duvidosas e outras formas pouco criativas de seguir na tentativa de esticar fenômenos de público/crítica. Dito isso, é com alegria que encaramos a quinta e última temporada de Maravilhosa Sra. Maisel, ela que encerra com dignidade e sensibilidade as desventuras da artista de stand-up que sobressai numa área desafiadora, apesar de todas as barreiras sociais impostas a ela pelo fato de ser mulher. Bonitos em alguns momentos, de certa forma ambiciosos em outros, os últimos episódios brincam com a nossa expectativa a respeito do futuro de Midge (Rachel Brosnahan) ao inserir algo que não havia aparecido tanto na série até então: os flashforwards. Ao contrário dos flashbacks, eles nos dão pequenas visões de futuro. Então, vemos flashes da protagonista madura e até bem idosa.

A utilização dos flashfowards na temporada derradeira de Maravilhosa Sra. Maisel tem duas funções básicas: 1) mostrar antes do encerramento efetivo que Midge se tornou uma estrela gigantesca do mundo do entretenimento; 2) apontar quais são os vínculos primordiais dessa protagonista cativante. O quinto ano começa com Midge preocupada diante do futuro, naquele momento da vida em que nem os bons momentos recentes garantem um caminho desobstruído à realização profissional/pessoal. Contratada como roteirista para um dos programas de auditório mais famosos dos Estados Unidos, ela se encontra numa sala dominada por homens, sendo a única mulher do recinto e, claro, penando para a sua primeira piada ser escolhida. A criadora Amy Sherman-Palladino poderia fazer dessa sensação de peixe fora d’água o ponto central do encerramento, a partir dela alimentando uma ideia crítica de exclusão por gênero. Mas, mantendo o rumo das temporadas anteriores, essas discussões estão contempladas, mas em meio uma leveza que nunca as ameniza, inclusive sem perder de vista outros núcleos muito importantes. Midge é uma personagem fascinante que veio de um mundo privilegiado, da classe média confortável de Nova Iorque, e pratica o seu feminismo de modo instintivo, pois o ímpeto de liberdade é algo inerente à sua personalidade. Voltemos às nobres funções dos flashfowards.

Maravilhosa Sr. Maisel estava desenhando uma trajetória ascendente para Midge, traçando os passos intermediários da carreira fadada ao sucesso. Se na temporada final a criadora resumisse as décadas que transformaram as tentativas em êxitos, a série teria ficado muito acelerada. Afinal de contas, estamos falando de um percurso. Ele não pode ser pedregoso em quatro temporadas e apressado para culminar no “deu tudo certo” na quinta. Portanto, os flashfowards servem para abreviar etapas intermediárias entre a encruzilhada e o destino. Não é importante sabermos de modo detalhado cada passo de Midge até se transformar numa sumidade da comédia. Basta saber que ela conseguiu. E Amy Sherman-Palladino faz isso de maneira coerente, fugindo de idealizações ao apresentar os preços que o foco na carreira cobraram, sendo o principal deles a relação truncada com os filhos crescidos, a briga com Susie (Alex Borstein), a prisão de Joel (Michael Zegen), a dificuldade da protagonista com sua mãe, Rose (Marin Hinkle), os casamentos frustrados, entre outras coisas. Assim, Midge continua não sendo canonizada como mãe e esposa, algo vital para o encerramento ser adequado ao espírito da série. E, ainda sobre os flashfowards, a grande carta na manga para estabelecer os tons dessa temporada final, eles estão sempre enfatizando o quanto Joel e Susie são os grandes amores/amigos de Midge.

Tirando algo que conseguíamos intuir pelos rumos das temporadas anteriores (Joel pode até não ficar com Midge, mas é o principal homem de sua vida), Maravilhosa Sra. Maisel aposta na conexão entre a protagonista e sua empresária num processo interessante que transforma Susie quase numa co-protagonista pela forma como o seu futuro também é enfatizado. Uma mulher separada nos anos 1950, ridiculizada quando diz que deseja viver da comédia e perfurar a bolha das áreas restritas a homens de terno e gravata; uma mulher que trabalha em espeluncas, mas que pretende se transformar numa empresária influente e poderosa, assim rompendo barreiras profissionais costumeiramente vencidas apenas por sujeitos munidos de seus privilégios numa sociedade menos hostil aos seus anseios masculinos. Elas formam uma dupla e tanto, como vemos no delicioso episódio em que Midge precisa se apresentar num musical sobre coleta privada de lixo para ajudar a retribuir os favores que Susie deve à máfia – toda essa dinâmica é uma brincadeira com as histórias de associação entre grandes nomes do entretenimento norte-americano e setores obscuros de sua “economia marginal”. O rompimento no futuro, a expectativa de uma aproximação e, principalmente, a cena final da série colocam Susie nesse lugar merecido de co-pilota da Sra. Maisel. Aliás, é difícil segurar as lágrimas no momento derradeiro, com as suas seguindo um costume que as conecta mesmo quando estão à distância.

O começo dessa crítica falou de séries que se recusam a acabar – principalmente por questões de ordem prática, como continuar lucrando. Tendo em vista o panorama, essa teve uma vida plena, com altos e baixos, certamente, mas manteve um nível elevado e foi encerrada com a dignidade merecida. Destaque especial para Abe (Tony Shalhoub), o pai de Midge, certamente o coadjuvante mais brilhante do programa. E Amy Sherman-Palladino sabe reconhecer esse valor ao lhe dar alguns momentos preciosos na quinta temporada, como toda a história envolvendo a tradição de genialidade dos primogênitos homens dos Weissman (cujo resultado é a mudança de paradigma que retoma a questão do gênero), a preocupação com um erro bobo que mostra toda a sua personalidade obsessiva e o instante de emoção em que ele reconhece nunca ter dado o devido valor à sua filha. Kevin Pollak e Matilda Szydagis, intérpretes dos ex-sogros da protagonista, também são contemplados com espaços condizentes com as suas excelências cômicas (com destaque à queda de ambos no banheiro). Enfim, é inevitável sentir saudades desses personagens habitando os Estados Unidos esteticamente inconfundíveis dos anos 1950 que começavam a fervilhar em preparação às mudanças comportamentais dos 1960/70. Mas, Maravilhosa Sra. Maisel soube acabar na hora certa, antes de se tornar mais uma.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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