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Sinopse

Tentando de tudo para não deixar seus problemas pessoais influenciarem sua atuação profissional, uma detetive de uma pequena cidade da Pensilvânia decide investigar o misterioso assassinato de um cidadão local.

Crítica

O nome dela é Marianne. Mas isso o público só descobre no último episódio da série criada por Brad Ingelsby, mais conhecido até então por ter sido o roteirista de filmes como Tudo Por Justiça (2013) e O Caminho de Volta (2020). Isso porque todos ao seu redor a tratam apenas por Mare. O apelido que vem da infância e a persegue até hoje, já uma das mais renomadas detetives do Departamento de Polícia de Easttown, uma pequena cidade no interior da Pensilvânia, Estados Unidos. Parece ser apenas um detalhe, mas é, na verdade, a chave para um entendimento mais amplo dessa trama que pode ser vista apenas pelo seu texto – a detetive que precisa descobrir quem matou uma garota e jogou seu corpo num riacho das redondezas – como, também, pelo seu subtexto – as relações que se dão entre os vizinhos e moradores do local e a força desses laços na construção de suas personalidades, ações e, principalmente, reações. Quem são essas pessoas, o que as motivam, e, acima de tudo, o que teria levado uma delas a cometer um crime tão bárbaro? Como se percebe, há mais de um ponto de vista a ser assumido em Mare of Easttown, e independente do qual se persegue, é com gratificação que se reconhece a eficiência da proposta. A diferença, no entanto, está entre a diversão passageira e um intenso estudo de personagem, com repercussões que vão além do mero entretenimento. Tudo feito com cuidado e esmero.

Se num primeiro momento o argumento soa similar a muitos do gênero – de Twin Peaks (1990-2017) a Em Defesa de Jacob (2020), entre tantos outros – é no seu desdobramento posterior, que deixa claro estar mais preocupado com os seres envolvidos com os fatos do que com esses em particular, que Mare of Easttown consegue se desvencilhar com habilidade dos lugares comuns do gênero para se mostrar como uma obra acima desse tipo de suspeita. Por um lado, não esquece a necessidade – e sua consequente urgência – da investigação a ser feita, que vem a se somar a outros trágicos incidentes que vem abalando a até então pacata comunidade. Há mais ou menos um ano uma jovem, de idade próxima da falecida, está desaparecida, sem que se descubra pista do seu paradeiro. E as coisas pioram quando uma terceira garota também some. Estariam os três casos relacionados? Essa é a pergunta que povoa os pensamentos de Mare. Porém, é também apenas mais uma das suas preocupações. Afinal, trata-se de uma mulher de meia idade que possui problemas íntimos com os quais lidar, como o ex-marido que segue morando no terreno ao lado, a mãe que se mudou para sua casa, o neto cuja guarda está sob seus cuidados – mas que corre o risco de perder para a mãe natural do menino – ou mesmo o surgimento de novos interesses amorosos. Nada que se compare, é claro, com a dor da perda recente do filho mais velho, que tirou a própria vida.

Como se vê, a situação é complexa. Mare está longe de ser uma daquelas policiais solitárias e antissociais, que mergulha no trabalho para esquecer dos conflitos pessoais. Pelo contrário, tem muito com o que se ocupar cada vez que volta para casa. Tanto é que lhe é difícil separar uma coisa da outra, e ter concentração tanto para resolver os embates familiares como lidar com os compromissos profissionais. Tudo é misturado, seja no dia a dia, como na prática de suas responsabilidades. Quando recebe o chamado de uma senhora que reclama de um estranho que a está lhe espionando do seu jardim, não precisa olhar para o endereço: a solicitante é uma conhecida de muito tempo. E assim como os conhece, a recíproca também é verdade. É na vida de pessoas com quem conviveu a vida toda que precisa, na base cotidiana, interferir. Por isso, se num momento esses a veem como uma autoridade ou possibilidade de salvação, não leva muito para que passem a tratá-la com desprezo e até mesmo revolta caso nestes calcanhares ela se veja obrigada a pisar. As linhas que os separam são tênues, e o modo como o diretor Craig Zobel (A Caçada, 2020) recorre a elas é eficiente para gerar essa sensação tanto de proximidade como de invasão.

Muito do mérito do sucesso da empreitada está nos ombros – e no corpo inteiro – da protagonista, vivida com absoluta entrega por Kate Winslet. Estrela de um dos maiores sucessos de todos os tempos (Titanic, 1997) e vencedora de um Oscar (O Leitor, 2008), a atriz oferece uma composição completamente desprovida de glamour ou afetações, o que tanto a distancia da realidade de uma celebridade hollywoodiana como a torna uma pessoa comum, aquela da porta ao lado que tanto pode estar presente para apontar seus erros como ajudar num momento de perigo. Se a forma que escolhe para abordar essa mulher tão mergulhada em seus dramas garante meio caminho, o resto é completado por um percurso naturalista, que evita grandes discursos e abordagens expositivas, se guiando, por sua vez, pela atenção aos detalhes e no cuidado que experimenta cada vez que precisa se impor em cena. Ela sabe de sua autoridade, assim como os demais. É por isso que renuncia a palavras de ordem e frases-chavão. Basta se fazer constante. E assim, quando precisa baixar a guarda – seja na relação com a mãe (participação deliciosa da sempre ótima Jean Smart), na criação do neto, ou mesmo nos relacionamentos que estabelece com o colega vivido por Evan Peters (desprovido das muletas que o tornaram conhecido em American Horror Story, 2011-2021) ou com o professor interpretado por Guy Pearce (reprisando o par romântico de Mildred Pierce, 2011) – a sensibilidade que expõe nesses instantes apenas reforça a personalidade rígida que faz uso na maior parte do tempo.

Mas Mare of Easttown não é apenas Kate Winslet, por melhor que ela esteja. De nada adiantaria sua sólida atuação caso o texto que leva adiante não servisse de convencimento junto ao espectador. Como dito antes, era preciso que o mistério a ser solucionado fosse não apenas envolvente, mas também convincente em sua resolução. Duas linhas que são alcançadas com êxito. A partir do momento em que a trama deixa claro tratar de dois casos em paralelo – o das meninas desaparecidas e o do assassinato que choca a região – um não acaba soterrado pelo segundo, ou relegado a um segundo plano. Ambos correm para suas resoluções, e o desprendimento com o qual os realizadores lidam com as consequências de cada ato – seja dos que tem muito a esconder como daqueles atrás da verdade – é garantia de energia no que precisa ser feito como também de sinergia entre cada um dos atores. É impressionante a coesão entre aqueles em cena, por menor que seja cada exposição na tela. Um tropeço aparentemente descuidado, uma troca de olhares ao acaso, um aperto de mãos protocolar, um abraço entre amigas: cada pequeno gesto é como uma peça de um quebra-cabeças maior, e será apenas a partir da sua conclusão que o vislumbrar do que de fato ocorreu se dará sem maiores dúvidas.

Atores, cenários, narrativa e condução: tudo parece se encaixar com precisão em nome de um objetivo maior: contar uma história que não apenas repercuta em sua audiência, mas que também seja eficiente em provocar questionamentos e reflexões. Muito além da mera tarefa de whodunit, ou seja, descobrir quem é o culpado do crime, Mare of Easttown, ao menos nessa primeira temporada – foi apresentada como minissérie, mas o sucesso da empreitada e o formato escolhido possibilitam possibilidades de futuros desdobramentos – é conciso em sua abordagem madura da difícil arte de ser adulto, lidar o tempo todo entre a retidão e a ética (os personagens estão longe de ser perfeitos, a começar pela própria Mare, que é suspensa do trabalho no meio dos acontecimentos por um ato absolutamente condenável, mas com o qual é impossível não se relacionar), e mesmo que alguns desfechos soem por demais facilitados (a vida amorosa da protagonista, a responsabilidade pela criação do neto, a resolução de um dos mistérios), está em como se apresentam, e se entendem, o maior mérito desse conjunto. Seja entre Winslet e seus colegas de trabalho, familiares e, principalmente, ao lado da melhor amiga vivida por Julianne Nicholson (uma atriz que merece uma atenção especial), há mais a ser depreendido do que uma percepção rápida de cada um desses encontros possa entregar. Um belo exemplo de um todo que, independente das partes ou da soma desses, encontra um saldo mais do que positivo.

 

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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