Crítica


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Sinopse

"Não havia garantia de que fazer uma adoção nos possibilitaria um bebê mais rapidamente. De fato, nossa agência nos alertou que, como um casal gay masculino, poderíamos enfrentar uma longa espera".

Crítica

“Estou cansado de ser eu. Me sinto incompleto”, declara certa noite, sem motivo aparente, Andy (Brandon Kyle Goodman) ao marido Tobin (Andrew Scott). Este faz algumas piadas, mas logo pergunta: então adotamos ou temos nossa própria criança? Misturamos nosso sêmen no óvulo de uma doadora? Quando a criança chega em casa? Em Hers Was a World of One, a decisão de ter um filho aparece de maneira abrupta, como o capricho de um casal entediado em busca de uma nova planta ou móvel para alegrar o ambiente. Trata-se de dois homens que vivem num apartamento extremamente confortável, embora nenhum deles seja visto trabalhando de fato. Eles se amam, dentro de uma série que pretende demonstrar um olhar progressista (afinal, os protagonistas são homens gays, um deles negro), mas jamais manifestam afeto para além de um rápido beijo. Desejo sexual, então, nem pensar. A vida desses homens parece fácil e inconsequente – algo curioso em se tratando da importante decisão de adotar uma criança.

A adesão do espectador ao sétimo episódio de Modern Love depende de sua tolerância ao ambiente hipster muito próximo da caricatura involuntariamente cômica. Todos os personagens são indiferentes, meio desleixados, embora circulem por cafés e restaurantes moderninhos da cidade. Karla (Olivia Cooke), a adolescente que se dispõe a entregar o bebê ao casal, constitui uma figura livre, que vive na rua por convicção e desprezo pelo capitalismo. Ela não possui sentimentos pelo bebê – nem positivos, nem negativos – e fala da entrega como um gesto banal. Este é um mundo morno sem amores profundos nem ódios intensos, sem pulsões nem dilemas psicológicos, porém impecavelmente revestido de casacos belíssimos e apartamentos que parecem saídos de revistas de decoração. Chegando ao último episódio individual antes da conclusão coletiva, a série deixa a impressão de abraçar Nova York pela parcela de classe média-alta, cuja única preocupação consiste em amar, ser amado ou descobrir o amor próprio.

Hers Was a World of One ainda enfrenta problemas em sua perspectiva política. Mesmo se concentrando num casal inter-racial, trata de colocar Tobin como protagonista, deixando Andy em segundo plano. Para discutir o aborto, introduz uma piada grosseira sobre uma minúscula cadela, uma Lulu da Pomerânia, grávida de um Golden Retriever. Embora queira destacar a vida das pessoas desprovidas de bens, jamais mostra Karla de fato em situação de rua, e chega ao cúmulo de convidar o cantor Ed Sheeran para interpretar um mendigo, numa escolha absurda dentro do universo proposto. Para uma narrativa afeita ao naturalismo, algumas interferências beiram o mágico, o que inclui a aparição instantânea de Karla na vida dos dois homens. A crença de que o amor resolve todos os problemas – premissa básica de qualquer romance, comédia romântica ou derivados – pauta estas crônicas extraídas de um jornal, que mais lembram contos de fadas para os abastados nova-iorquinos.

O elenco, como de costume, constitui o melhor aspecto do episódio. Olivia Cooke, uma das melhores atrizes de sua geração no trato com diálogos, sublinha a brutalidade das palavras de modo ainda funcional dentro de uma chave verossímil. Os poucos momentos em que necessita virar ao drama clássico são muito bem desempenhados pela jovem. Andrew Scott, o padre descolado de Fleabag, constitui o personagem de maior transformação no episódio, sendo obrigado a confrontar seus medos diante da presença de um bebê. Já Brandon Kyle Goodman compõe uma versão respeitosa do homem efeminado, embora seu personagem seja aquele tristemente subdesenvolvido, deixado de escanteio sempre que o roteiro pode ter Tobin e Karla a sós. A série da Amazon decide refletir sobre um mundo contemporâneo, de novas configurações familiares e amorosas, mas o faz de um ponto de vista idealizado. Assim como Karla, o projeto também precisaria se questionar sobre a distância entre suas ideias políticas e a prática das mesmas na hora de se confrontar ao mundo.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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