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Sinopse

Uma jovem judia foge do Brooklyn para Berlim a fim de escapar de um casamento arranjado. Mesmo se juntando a um carismático grupo de músicos, ela vai entender que deixar o passado para trás não é tão simples.

Crítica

A priori, a minissérie da Netflix se prestaria a uma ampla denúncia do fanatismo religioso controlando os corpos e as mentes das mulheres. O livro no qual é baseado, “Unorthodox: The Scandalous Rejection of My Hasidic Roots‎”, de Deborah Feldman, traz a noção de “escândalo” no título. Talvez esta seja a reação da família da protagonista, horrorizada com o fato de a jovem mulher casada, pertencente a uma comunidade judaica em Nova York, abandone as raízes e fuja para Berlim. No entanto, esse não constitui qualquer escândalo para a diretora Maria Schrader e as criadoras do projeto, muito mais interessadas em investigar a psicologia da protagonista Esther (Shira Haas) e dos familiares radicais do que em escancarar abusos ou maus-tratos. O projeto percebe a situação da jovem como um impasse entre duas visões de mundo, ou seja, um choque entre a tradição e a modernidade, percebidas como incompatíveis, porém sem hierarquia entre elas.

Um dos melhores aspectos do projeto se encontra na caracterização detalhada dos rituais e tradições que cercam a comunidade ortodoxa de Williamsburg. O roteiro é visivelmente escrito por pessoas com conhecimento de causa, a partir de um olhar empático à situação feminina. As festas de casamento, as tradições nupciais e domésticas, as proibições e obrigações da mulher são detalhadas de maneira orgânica pela trajetória de Esty, que sofre forte pressão para engravidar logo após contrair matrimônio com Yakov (Amit Rahav), embora não tenha qualquer desejo sexual pelo marido, e tampouco conheça o funcionamento de seu próprio corpo. A trajetória de Esty é violenta, porém percebida como gentil pelas pessoas ao redor: a cada nova pressão para fazer sexo e engravidar, a moça escuta palavras amorosas de que as regras seriam para seu bem e garantiriam a felicidade futura. Entre tantas mulheres que se sentem satisfeitas com as leis religiosas, a protagonista constitui um ponto fora da curva. Em paralelo, os homens são pressionados para engravidarem suas esposas, para mantê-las no lar e conhecerem sempre o paradeiro das mesmas enquanto trabalham. Nem Esty, nem Yakov são donos de seus corpos e de suas vidas.

Dotado de pretensões estéticas modestas, Nada Ortodoxa baseia o sucesso de sua mise en scène quase inteiramente nos intérpretes e no texto. Felizmente, ambos se saem muito bem: Shira Haas possui constante olhar de incômodo, algo que jamais se traduz em ingenuidade nem passividade. A jovem se mostra ignorante em relação ao mundo globalizado (em Berlim, ela precisa descobrir a Internet, as festas, o sexo), porém bastante proativa em relação a essas experiências. Amit Rahav, introvertido e comportado, produz ótimo equilíbrio com Moische (Jeff Wilbusch), seu parceiro de cena durante a maior parte da minissérie, em atuação mais agressiva. Mesmo a mãe de Esther (Alex Reid), privada de se expressar durante metade da narrativa, encontra bons momentos para reparar o silêncio. Há cerca de seis personagens principais, cada um deles recebendo pelo menos uma boa cena para explorar seus dotes dramáticos. O roteiro consegue equilibrar uma abordagem fria e frontal (do tipo que acompanha sua personagem de longe, sem julgá-la) com os aspectos tradicionais de um melodrama envolvendo casamentos forçados, estupro conjugal, gravidez secreta, homossexualidade escondida e sequestro de mulheres.

Em termos de estrutura, aposta-se num caminho seguro e funcional: partindo da cena inicial da fuga, cada episódio alterna flashbacks do passado (explicando o funcionamento da comunidade religiosa e a dificuldade de pertencimento de Esther) com o presente, quando a jovem, sem peruca nem trajes típicos, experimenta novas formas de viver em sociedade. O espectador leva quatro episódios para descobrir de fato o que aconteceu com a mãe de Esther, em quais circunstâncias a protagonista decidiu partir, e de que maneira Yakov e Moische pretendem trazer a esposa fugitiva de volta aos Estados Unidos. Por esta razão, o episódio final é também o melhor em termos de descrição de personagens. Ao invés de propor encontros violentos e bruscos – possibilidade trabalhada com frequência, pela presença de ameaças e revólveres –, o texto encontra espaço para um inesperado diálogo entre dois mundos, articulado com melancolia e respeito entre as partes adversas. A aguardada apresentação de Esther no conservatório de música, evento que se anuncia no horizonte durante mais de duas horas de narrativa, guarda boas surpresas e garante o maior impacto emocional de toda a minissérie.

No entanto, é curioso o ponto em que a história decide terminar. Finais abertos são justificáveis dentro de um percurso tão regrado quanto o da jovem protagonista. No entanto, o final aberto não pode ser confundido com a ausência de final. Diversos conflitos essenciais na vida de Esther não ganham definição, nem mesmo uma alusão de como podem ser resolvidos ou contornados num futuro próximo. Compreende-se que Nada Ortodoxa deixe as pressões externas de lado e se encerre quando a protagonista encontra sua paz exterior. Existe uma beleza notável na decisão de colocar a força de Esther acima de todos os demais problemas. No entanto, eles continuam existindo de forma tão ameaçadora que talvez um quinto ou sexto capítulo fossem benéficos para acenar a novos rumos na vida da jovem. Ao mesmo tempo, Schrader poderia apostar em imagens um pouco mais ambiciosa, sem enquadrar seus personagens sempre no centro do plano, nem explorar uma direção de fotografia tão limpa que beira a assepsia – ou pior, o caráter publicitário. Pelo menos, em termos de humanismo e respeito, o projeto cumpre bem o seu papel, desenvolvendo uma ciranda de figuras complexas e multifacetadas. Embora não tenha sido concebida para uma segunda temporada, a série talvez trouxesse numa sequência mais oportunidades de desenvolvimento a personagens tão agradáveis de acompanhar.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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