Crítica
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Sinopse
Ulisses é um anjo muito questionador que acabou de chegar no 5511º Distrito Angelus. Assim que descobre como o trabalho deve ser feito, acaba quebrando todas as regras milenares do lugar com a melhor das intenções: ajudar os humanos que realmente precisam de ajuda. Afinal, tem gente que segue ordens e tem que se preocupa em mudar o mundo.
Crítica
Os protagonistas desta primeira temporada de Ninguém Tá Olhando são angelus. Mas, distante das imagens angelicais que povoam nosso imaginário – crianças de cabelinho encaracolado ou sujeitos de túnica –, eles são funcionários ruivos de uniforme parecido com o figurino da banda Rebelde (e a piada é devidamente feita em determinado momento). O protagonista é Ulisses (Victor Lamoglia), novato cuja recém-chegada é a desculpa ideal para que alguém explique a ele (e a nós, por tabela) como funciona aquele lugar semelhante a uma repartição pública. Aliás, nos dois primeiros episódios há críticas ferinas à estrutura burocrática, com direito a diversas brincadeiras a respeito da obediência cega de encarregados que durante milênios não questionam as ordens recebidas. Há a chacota aberta com o chefe (interpretado excepcionalmente por Augusto Madeira), o típico encarregado que adora ostentar sua posição de liderança, embora não faça tanta coisa por ali e acabe dando mais importância a supostos sinais divinos contidos num parafuso do que atenção aos acontecimentos.
Ainda que seja uma série de tiro curto, Ninguém Tá Olhando precipita o resultado na natureza contestadora de Ulisses, rapidamente mostrando-o quebrando as quatro regras pétreas dos angelus. Da mesma forma, um tanto afobada, arremessa o personagem na aleatoriedade de uma ordem alicerçada num ser onisciente que pretensamente escreve certo por linhas tortas. Porém, mesmo soando apressadas essas revelações imprescindíveis, pelo menos sem tempo prévio para o novato se aclimatar às leis a serem displicentemente quebradas, a série dá conta de manter um ritmo satisfatório quanto aos desdobramentos da ação desse portador de asas que não consegue entender a imposição dos mandamentos a serem seguidos. Algo que os criadores poderiam trabalhar melhor, e que nos oito episódios surgem como sinalização da ignorância dos bem-intencionados, é o efeito de agir tão e somente de acordo com uma noção individual de certo e errado. É tiro e queda que o altruísmo a um sem-teto vai acarretar um problemão ao homem adiante. Ação e reação.
Ninguém Tá Olhando tem um humor ligeiro e felizmente boca-suja. Quando se desenha o cenário do ser celestial apaixonado por uma humana, no caso Miriam (Kéfera Buchmann), pérolas cortam o bom-mocismo, tais como: “a verdade é tipo um consolo, sabe? Um consolo que você tem de enfiar no cu da outra pessoa bem devagarinho, porque se você enfiar rápido ela retrai”. Júlia Rabello, intérprete da angelus desiludida após descobrir que “não há” plano por trás da diligência cotidiana com os humanos, é quem mais deita e rola com essa liberdade para utilizar palavrões para expressar descontentamento, contrariedade e/ou raiva. Aliás, o ótimo desempenho do elenco é um dos pilares da série, com destaque especial para Danilo de Moura, cujo personagem, Chun, completa o trio celestial principal, e Leandro Ramos, o Julinho da Van do humorístico Choque de Cultura, que vive um veterinário que parece primo do personagem de Jeff Bridges em O Grande Lebowski (1998). Até quanto ao romance central, o tom difere do visto no filme Cidade dos Anjos (1998).
Claro que a premissa de um angelus apaixonado por uma humana remete ao longa-metragem estrelado por Nicolas Cage e Meg Ryan. E os idealizadores de Ninguém Tá Olhando não perdem a oportunidade de fazer deboche. A punição mencionada por Fred (Madeira) – assistir à produção pela eternidade – acaba sendo uma piada repetida até não ter tanto efeito prático. Mais eficiente nesse sentido é a utilização de uma máscara de Nicolas Cage por Ulisses numa festa à fantasia, exatamente porque ela aponta melhor ao vínculo. Há alguns assuntos sérios discutidos dentro dessa roupagem costurada a partir de retalhos de exageros e caricaturas bem articulados. Um deles é exatamente os efeitos de contar a verdade. Ulisses acha que está fazendo o bem, por exemplo, ao revelar a uma “especialista” em anjos que sua vida é baseada numa série de mentiras que aos angelus é um emaranhado de distorções à lá comédia stand up. Os tópicos não ganham aprofundamento, mas o acúmulo de pontuações dessa natureza traz uma base relativamente sólida para a instauração do humor.
Victor Lamoglia e Kéfera Buchmann se saem muito bem como o casal principal. Ele, na pele (ou seria na aura?) de um sujeito em processo de descoberta a respeito da validade da máxima "de bem intencionados o inferno está cheio". Ela, como a jovem que discute feminismo, astrologia e formas alternativas de consumo cotidiano, capaz de terminar um relacionamento se o vínculo estiver entre ela e sua concepção de vida. Em Ninguém Tá Olhando, nenhum personagem é investigado ao ponto de exibir densidade, característica do tipo de humor rápido, calcado em arquétipos, do qual os criadores se valem com habilidade ao construir uma mitologia própria. A crise se impõe como possível castigo divino quando os angelus achavam ser uma balela as consequências tão repetidas pelos chefes dos distritos. Isso dá um tempero singular à série, até então empenhada em descascar os celebrados mistérios e esclarece-los. O encerramento apresenta dois excelentes ganchos para uma segunda temporada, mas, de acordo com a Netflix, está descartada a continuidade desse programa que, ironicamente, acabou de receber o Emmy Internacional. Certamente merecia a segunda chance.
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