Crítica


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Sinopse

Carregando um passado difícil nas costas, um investigador tem de voltar da Noruega à Islândia a fim de ajudar determinado policial local a capturar o primeiro assassino serial do país.

Crítica

O imperativo da velocidade levou as séries de televisão a transformarem suas investigações sobre crimes em narrativas cada vez mais compactas. CSI e derivados costumam apresentar um ou dois crimes em menos de trinta minutos, tempo de descobrir o cadáver, procurar pelo responsável, enganar-se com um primeiro suspeito, encontrar o criminoso em seguida, prendê-lo e terminar o dia. Nas séries procedurais, o mínimo indício motiva uma conclusão veloz (“Esse tipo de tinta só pode pertencer a tal tipo de casa em tal tipo de bairro. Vamos!”), com análises de DNA e impressões digitais de resultados instantâneos. Juristas reais reclamam da maneira como estes projetos moldaram o imaginário norte-americano a respeito do trabalho da polícia. Na última década, os jurados tendem a exigir DNA e demais provas impossíveis ou inacessíveis, por se basearem nestas ficções express a respeito de investigadores geniais aliando-se a super hackers na luta contra o mal. A ficção se substitui à realidade, dando a impressão de que a resolução de casos consiste em esperteza e força de vontade, ao invés de diversas conjunturas estruturais.

Por esta razão, é sempre um prazer se deparar com narrativas nas quais se busca o prazer do percurso tanto quanto o prazer do desfecho. True Detective abordava um único caso pesquisado ao longo de uma temporada inteira, e O Assassino de Valhalla adota um caminho semelhante. Quando meia dúzia de mortes ocorrem na pacífica Islândia, um grupo de policiais liderados por Kata (Nína Dögg Filippusdóttir) e Arnar (Björn Thors) passa a fazer uma investigação. Eles esgotam suas pistas, procuram à esmo, esbarram em entraves burocráticos, flagram suspeitos que fogem, prendem testemunhas embriagadas cujo depoimento não é válido. Em muitos casos, sofrem com a falta de funcionários na delegacia e com a falta de dinheiro para expandir as buscas. Nenhum dos personagens revela poderes sobre-humanos de investigação à la Sherlock Holmes. Eles cometem erros, deixam passar alguns indícios, sofrem com a pressão de suas vidas domésticas – Kata enfrenta a rebeldia do filho adolescente, Arnar possui um passado mal resolvido com o pai doente. É fácil se identificar com estas pessoas persistentes, porém falhas e realistas, sujeitas a problemas de hierarquia e corrupção dos poderes tão comuns a quaisquer outros órgãos públicos ou empresas privadas.

O diretor e criador Thordur Palsson desenvolve gradativamente as cenas de assassinatos: a primeira morta é vista à distância, num fundo desfocado, apenas pelas pernas da vítima. A segunda morte ocorre fora do enquadramento, sugerida apenas pelos sons de gritos. Aos poucos, a câmera se aproxima, revela os corpos retalhados, o sangue, até fornecer a primeira morte ao vivo, ainda que se preserve a identidade do responsável. O percurso da câmera equivale àquele dos investigadores, chegando cada vez mais perto da verdade, obtendo informações fragmentadas (ora a imagem, ora o som), cabendo o espectador juntar as peças do quebra-cabeça ao mesmo tempo que os protagonistas. Pode-se dizer que o suspense investe numa estrutura tradicional, escondendo até o último episódio todos os seus segredos. O espectador conhece o mundo pelos olhos de Kata e Arnar, descobrindo apenas o que eles descobrem, algo que nos deixa em zonas sombrias durante a maior parte da temporada. Felizmente, o conjunto se desenvolve em ótimo ritmo, sem acelerar descobertas nem arrastar fatos pelo simples prazer de prolongar a tensão.

Enquanto True Detective recorre ao melodrama no que diz respeito à vida dos protagonistas, e How to Get Away With Murder aposta no crime-espetáculo, O Assassino de Valhalla mantém uma frieza – ou talvez seja melhor dizer, uma nostalgia – muito interessante para o gênero. O desempenho dos protagonistas ao longo da investigação é descrito enquanto trabalho, ao invés de vocação. Os diretores (além de Thordur Palsson, Thora Hilmardsottir e Davíd Oskár Ólafsson também comandam os oito episódios) fazem questão de mostrar as chegadas e saídas de casa, o cansaço acumulado e a facilidade com que os protagonistas passam a conversar sobre assuntos não relacionados ao caso. Contra a idealização do investigador obsessivo, que não consegue descansar nem se dedicar aos familiares enquanto o assassino não for preso, Kata e Arnar parecem dormir muito bem, obrigado. Enquanto isso, os deslocamentos entre cenas do crime são longos, as ligações telefônicas nem sempre são escutadas. Os revólveres jamais se transformam em trunfos da justiça/vingança, ao contrário de tantos projetos norte-americanos. A série transparece um raro e precioso aspecto de trivialidade, algo excepcional para a saga de um assassino em série.

O elenco está coeso, bem controlado para diminuir o pathos das mortes enquanto demonstra um interesse real na conclusão do caso. Nína Dögg Filippusdóttir compõe uma mulher forte que se impõe face às hierarquias, mas sabe se preservar quando sente que não pode ganhar uma batalha. Ela alterna momentos de tranquilidade com um turbilhão emocional transmitido através de sugestões: é muito mais potente percebê-la segurando o choro e o grito do que seria a exteriorização dos sentimentos. A expressiva atriz se equilibra bem com Björn Thors, em construção taciturna, muito menos expansivo que a colega, e fornecendo uma composição equilibrada para um personagem de traumas ainda mais profundos. Ao invés do tipo problemático e inconstante, o ator transforma o passado violento de seu personagem na tendência ao envolvimento superficial com as pessoas, o que talvez signifique um senso de autopreservação. A extensa galeria de coadjuvantes apresenta uma composição nada vaidosa em relação ao corpo e às falas. Ninguém parece posar para a câmera, declamar suas falas nem parar no ponto exato onde uma luz banha seu rosto. Estas pessoas se parecem bastante com um espectador médio.

Como se poderia esperar, há alguns revezes na construção da série. O importante conflito envolvendo o filho adolescente de Kata é resolvido de maneira anticlimática, abandonando a narrativa sem deixar marcas nos personagens. Nos dois episódios finais, efeitos sonoros abruptos e trilha sonora orquestrada aumentam o suspense em doses um pouco exageradas, visto que a situação transmitia bem a angústia por si própria. A única ideia dos diretores para representar as dezenas de saltos temporais se encontra nos planos aéreos de algum carro pelas estradas islandesas, percorrendo uma rota rodeada por neve. Haveria recursos mais inteligentes de roteiro e direção para manejar a passagem do tempo e a mudança do espaço, porém o uso ostensivo dos drones produz certo olhar idealizado ao país, em construção turística talvez destinada a valorizar as belas paisagens do país. No entanto, estes fatores constituem detalhes diante da narrativa muito bem conduzida, onde o dilema central envolvendo os garotos traumatizados de um orfanato se espelha bem nos traumas pessoais de cada policial.

O Assassino de Valhalla termina por traçar um painel pouco otimista sobre a nossa capacidade de lidar com a juventude, e mesmo de prevenir abusos sexuais e condutas violentas. Afinal, o passado se reflete no presente e se reproduz, demonstrando que Kata e Arnar estão inseridos numa cultura ampla de abuso de poder e hipocrisia das classes privilegiadas. O caso no qual trabalham se torna sintomático de feridas sociais que atravessam gerações, e das quais ambos são vítimas silenciosas. É interessante que os dilemas íntimos da dupla sejam mantidos em segredo, sem a necessidade de se misturarem publicamente com o conflito central. Neste sentido, há um discurso político pertinente, sobretudo pela forma agridoce como se encerra a investigação. É certo que um elemento importante foi omitido apenas para garantir a sequência da trama. Teria sido mais natural fechar este arco dramático de uma vez por todas, porém a Netflix deve ter apostado na continuidade do projeto, deixando ganchos para uma sequência que não deve tardar a chegar. Ora, este universo é tão verossímil e bem orquestrado que seria muito prazeroso ver a equipe se reunir para desvendar novos crimes – ou preencher as lacunas pendentes na investigação original.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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Grade crítica

CríticoNota
Bruno Carmelo
8
Leonardo Ribeiro
7
MÉDIA
7.5