Crítica


4

Leitores


1 voto 8

Sinopse

Enquanto certas leis da ciência começam a cair por terra, um grupo de cientistas faz descobertas revolucionárias ao longo das décadas.

Crítica

Mais novo sucesso da Netflix, a série O Problema dos 3 Corpos é baseada no livro homônimo de Cixin Liu e pode ser definida, em linhas gerais, como um suspense de ficção científica. E, talvez, uma boa maneira para compreender o crescente desinteresse pela trama seja examinar como os elementos desses gêneros são (mal) utilizados – os problemas do programa vão além disso, mas o caminho nos dá um bom ponto de partida. Porém, antes analisemos um pouco da trama. Nos primeiros episódios há uma alternância temporal misteriosa entre eventos acontecidos na China modificada socialmente pela Revolução Cultural e insondáveis casos de grandes cientistas na atualidade acometidos por alguma coisa (uns se suicidam, outros parecem assassinados etc.). A montagem paralela dessas situações evidencia que algo as conecta profundamente. Por mais estranho que possa parecer, há um elo entre o drama passado da garota que enxerga o pai, professor emérito de física, ser assassinado num palanque pela juventude revolucionária contrária à Teoria da Relatividade (por considerá-la proposta imperialista) e uma espécie de cataclismo bizarro afetando no presente algumas das mentes mais brilhantes do mundo. É justamente esse estranhamento que os criadores utilizam para alimentar a dúvida, um dos princípios fundamentais do suspense. Por alguns momentos essa instigação é até bem-sucedida.

No entanto, sem muita demora, O Problema dos 3 Corpos passa a negligenciar a construção do suspense, não perseverando na manutenção dos mistérios, apostando no esclarecimento dos enigmas de modo mais expositivo possível. Então, se um dos méritos dos passos iniciais da série é exatamente a maneira como eles estimulam a nossa curiosidade com aquilo que parece difícil de concluir, esses predicados vão sumindo rapidamente. E cedem espaço a uma lenga-lenga que intercala a banalização da especulação científica e a exploração superficial de dramas individuais. O núcleo britânico do presente tem como protagonistas amigos cientistas que estudaram juntos na faculdade. Jack (John Bradley) se transformou num ricaço boa-praça que adora memorabília e outras traquitanas ligadas a cultura pop; Saul (Jovan Adepo) transita entre os amigos sendo mais um apoio moral do que expressando qualquer valor profissional; Will (Alex Sharp) virou professor e enfrenta uma doença terminal; Auggie (Eiza González) é a pesquisadora brilhante dedicada à nanotecnologia que, depois de ser alvo do inimigo desconhecido, mantém um semblante sofrido; por fim, Jin (Jess Hong) é a mais importante deles, pois será a líder das pesquisas para revidar contra os inimigos extraterrestres tecnologicamente avançados que prometem nos subjugar daqui a quatro séculos – tempo para chegar fisicamente à nossa Terra.

O Problema dos 3 Corpos tem entre seus criadores David Benioff e D.B. Weiss, dupla reconhecida por ter liderado o sucesso Game of Thrones (2011-2019) – o que eleva a expectativa e aumenta o tombo. Quando é deflagrada a questão extraterrestre como algo essencial à série, os roteiristas tratam de simplificar toda e qualquer circunstância – dá para acreditar que os habitantes de outro planeta, donos de tecnologias que nos viram do avesso, descobrem a mentira humana ao compreender Chapeuzinho Vermelho? Nessa toada, se há a perspectiva do surgimento de uma inovação capaz de proteger a humanidade, sempre surge alguém esmiuçando prós e contras, mastigando a informação. Os criadores não resolvem um problema sério de verossimilhança provocado pelo simplismo com o qual mentes brilhantes conversam entre si sobre problemas complexos. E aí começamos a entrar das fragilidades do programa como um exemplar de sci-fi. Esse gênero trabalha como pressupostos conceituais do universo científico e, geralmente, os coloca a serviço de especulações descritivas de futuros em crise. Pois bem, não basta os criadores encararem de maneira condescendente a utilização do sci-fi (o destrincha como num manual de instruções para “situar o espectador”), pois também vulgariam situações que eles próprios descrevem inicialmente como desafiadoras até para os cérebros mais brilhantes do planeta. Como no caso em que a pesquisadora Jin é provocada a encontrar a solução impossível.

Jin é instigada pelo enigmático Wade (Liam Cunningham) a viabilizar uma viagem espacial quase impraticável – algo enxergado como utópico por uma sala repleta de ganhadores do Prêmio Nobel. Na cena subsequente a essa proposta, a cientista já aparece com um plano mirabolante e altamente complexo que parece ter sido traçado do dia para a noite. Situações como essa descredibilizam as marcas de ficção científica de O Problema dos 3 Corpos, pois fazem parecer que problemas anos-luz à frente da nossa compreensão podem ser solucionados com um pouco de motivação e boas doses de senso de urgência. Ainda dentro disso, o game utilizado pelos extraterrestres para recrutar os humanos mais inteligentes à sua comissão de boas-vindas é outro instrumento da simplificação e, mais à frente, da exposição que visa elucidar as dúvidas.  Além disso, os roteiros apostam numa malograda alternância entre pequenos dramas pessoais e questões de altíssima complexidade que têm a ver com a sobrevivência do planeta. A única dessas trajetórias individuais que conserva algum interesse é a de Will, o rapaz moribundo sem coragem de declarar o seu amor pela amiga, peça fundamental do plano derradeiro que tem mais de estapafúrdio do que de mirabolante. As demais intimidades são elaboradas com tanta displicência que não tem fôlego para se tornarem interessantes, como os problemas de Jin com o namorado, a culpa lacrimosa de Auggie, além do luto entre eles pela morte de entes queridos.

O Problema dos 3 Corpos mantém algumas dúvidas no ar: quem, de fato, é Wade, esse sujeito que subjuga até mesmo os líderes de Estado? Por que um Zé Ninguém como Saul vira uma das pessoas mais influentes do mundo? Curiosamente, as interrogações mantidas não nos mobilizam. A partir de certo ponto, até pelo acúmulo de situações e desdobramentos, pouco importa a quem responde o tal sujeito superpoderoso, por exemplo. A série lida com diversas questões que precisariam de mais tempo para serem desenvolvidas sem o efeito colateral do descrédito da ficção científica e, quiçá, para o suspense ganhar sobrevida. Os criadores atribuem peso dramático equivalente à exposição de uma tecnologia avançadíssima capaz de ser utilizada belicamente para matar centenas de pessoas ao mesmo tempo e aos dilemas amorosos do rapaz disposto a comprar uma estrela para presentear o seu amor platônico. No fim das contas, o programa funciona pouco como sci-fi (pois suas especulações até são interessantes, mas a formulação das teses e a execução dos planos tornam tudo banal) e compromete o suspense ao oferecer rápido demais as respostas definitivas sobre situações e personagens que pareciam insondáveis. E ainda há excedentes inexplicáveis, como as conversas descartáveis entre Da Shi (Benedict Wong) e seu filho, bem como figuras que ganham importância momentânea, do nada.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
avatar
Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *