Crítica


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Sinopse

Voyeur incontrolável e hacker extremamente habilidosa, Miranda passa seus dias observando a rotina de uma prostituta de luxo que mora no prédio diante do seu. Ela não imaginava que isso a levaria a um triângulo amoroso.  

Crítica

Há alguns anos, a Netflix lançou uma iniciativa batizada como “Mais Brasil na Tela”, que visava, obviamente, disponibilizar – e produzir – mais conteúdo brasileiro em sua plataforma de streaming. No entanto, a questão é que nem sempre quantidade implica, necessariamente, em qualidade. E essa ânsia em possibilitar o alcance do seu público ao maior número possível de filmes e séries feitos no Brasil tem revelado uma certa falta de critérios – ou, pelo contrário, a existência, sim, desses, mas dotados de um viés distorcido, que privilegie apenas o aumento da audiência através de recursos rasteiros e óbvios, sem uma preocupação voltada à pertinência e relevância do que tem sido feito e exibido. Um bom exemplo disso é a série Olhar Indiscreto, cuja primeira temporada, de dez episódios com aproximadamente 30 minutos cada, até pode mirar em Alfred Hitchcock, mas tudo o que consegue é se mostrar como um genérico ainda mais irrelevante da global Verdades Secretas (2015-2021).

A proposta do programa criado por Marcela Citterio – roteirista argentina, responsável por comédias ou infantis como Chica Vampiro (2013-2015) e Eu Sou Franky (2015-2016) – parte de uma ideia que deveria soar, ao menos, estimulante a um espectador acostumado com grandes maratonas televisivas. Afinal, a protagonista, Miranda, vivida sem muito ânimo por Débora Nascimento (que diferença vê-la aqui, como uma figura unidimensional e desprovida de motivações, se comparado com outros dos seus trabalhos, como o drama Pacificado, 2019, no qual surge como uma garota afetada por dores reais e passíveis de identificação, fruto de um trabalho de composição que vai além da superfície), é alguém acostumada a... observar. Sim, trata-se de uma voyeur – não por acaso, o título internacional da série é Lady Voyeur! – que, aficionada pela vizinha do prédio da frente, acaba por presenciar um possível crime e, sem ter nada melhor para fazer, decide investigar o ocorrido por conta própria.

Há ecos que vão do clássico Janela Indiscreta (1954) até os nacionais O Outro Lado da Rua (2004) e De Onde Eu Te Vejo (2016), porém a boa ideia inicial – que, se bem desenvolvida, possuía potencial para resultar em algo original e envolvente – logo se perde diante de outros recursos, sendo esses mais apelativos e capazes de provocar reações imediatas. Ou seja, menos reflexão e mais constrangimento. Cléo (Emanuelle Araújo, deixando claro que não irá se livrar da postura desinibida e afirmativa vista em Samantha!, 2018-2019, tão cedo), a vizinha, é uma prostituta de luxo dividida entre dois clientes preferenciais: Fernando (Nikolas Antunes, incapaz de disfarçar as reais motivações de seu personagem, invalidando uma reviravolta final que, ao invés de surpreendente, se mostra não mais do que aguardada) e Heitor (o português Ângelo Rodrigues, que até possui um histórico no seu país de origem – foi premiado pela novela Golpe de Sorte, 2019-2020, e revelado como um dos melhores da temporada em sua estreia como protagonista em Rosa Fogo, 2011-2012 – mas se mostra monocórdio e inexpressivo na maior parte do tempo nesse primeiro trabalho no lado de cá do Atlântico). O curioso? Os dois são não apenas amigos, mas cunhados. E, mesmo assim, desconhecem que buscam os serviços da mesma profissional. Acasos como esse se repetirão do início ao fim.

Não é tanto pelas diversas – e insistentes – coincidências, que volta e meia surgem sem maiores explicações ou justificativas, que vão enfraquecendo o desenrolar dos acontecimentos, e, sim, a desfaçatez dos realizadores em tratar estes encontros e enganos como obras do destino, e não de modo sarcástico ou mesmo irônico. Elaborada através de uma série de flashbacks, Olhar Indiscreto até pode se mostrar instigante no começo, mas esses maneirismos, ao invés de funcionarem como soluções ocasionais, rapidamente assumem a posição de muletas, fragilizando um conjunto que já não era dos mais auspiciosos. Heitor é o misterioso, aquele repleto de segredos, dono de motivos para infringir as regras e com traumas do passado que ainda não se aquietaram. Já Fernando posa de bom moço, o enteado rejeitado, o meio-irmão carente, o que se mostra acostumado a receber esmolas afetivas e se contenta com pouco. Como fica claro que ninguém em cena é, de fato, o que parece ser na apresentação, e como Miranda se vê indecisa entre os dois, não precisa ser gênio para adivinhar qual deles está sendo sincero e qual, enfim, tem realmente o que esconder.

Uma vez que as intrigas são facilmente percebidas, coube aos roteiristas aumentar as apostas, passando do improvável ao ridículo e absurdo. Miranda, que aos poucos vai assumindo o lugar de Cléo – chegando até mesmo a se prostituir eventualmente – faz pouco além de observar o drama dos outros. De si mesma, carrega a culpa de uma avó com a qual não tem muita paciência (Debora Duarte, em participação mínima e menosprezada) e a falta de tato ao lidar com a melhor amiga, Rita (Ingrid Klug, um dos poucos destaques do elenco), a garota com “dedo podre” para arrumar namorado que pode acabar se envolvendo com um tipo mais perigoso do que aqueles com os quais está habituada. Por outro lado, Cléo não só está desaparecida, como Heitor precisa lidar com o assassinato da esposa, a descoberta de que não é pai biológico da própria filha, o envolvimento dessa com um pedófilo digital, e o peso de ter causado a morte de um dos seus melhores amigos. Bernardo (Rodrigo Dorado, de Bruna Surfistinha, 2011), a vítima, é, aliás, o elo entre todos, e mesmo tanto tempo depois, segue presente: em que circunstâncias, afinal, teria morrido? Quem seria o responsável? O que sabia que não poderia ser revelado? Nada, porém, que possa tirar o sono da audiência.

Entre uma senhora repleta de más intenções (Tânia Alves, a única que parece estar se divertindo no meio de tantos excessos e absurdos) e clubes de sexo que gostariam de soar como uma versão tupiniquim do perturbador De Olhos Bem Fechados (1999), mas tudo o que conseguem é se aproximar de algo um pouco mais produzido feito pela Brasileirinhas (produtora nacional de cinema pornô), Olhar Indiscreto não percorre nem metade do que promete, e ainda perde tempo no meio de tantos caminhos que não levam a lugar nenhum, suspeitas que não se confirmam e dramas e tipos que desaparecem com a mesma rapidez com que entram em cena, deixando marca nenhuma após suas passagens instantâneas. Nem mesmo perguntas marteladas desde o capítulo de abertura conseguem ressoar por muito tempo, e no final, quando tudo, enfim, se confirma tão improvável quanto se poderia esperar – a revelação do que teria acontecido com Bernardo, no penúltimo episódio, é tão inacreditável e rocambolesca que provoca mais risos do que espantos – enquanto que outros momentos, que supostamente deveriam concentrar tensão, conseguem apenas investir no pastiche por meio de diálogos expositivos e desnecessários. Enfim, Olhar Indiscreto é uma promessa que não se cumpre, não se cria e nem se sustenta pelo mínimo esperado. Resta, apenas, torcer para que uma segunda temporada nunca se confirme.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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