Crítica


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Sinopse

Uma morte horrível acontece nas dependências de um condomínio luxuoso de Nova Iorque. Um trio suspeita de assassinato e decide investigar com base em seus conhecimentos de séries e filmes do filão "crime verdadeiro".    

Crítica

A estranheza inicial provocada pela reunião de nomes tão díspares é logo substituída por uma insuspeita química que termina por se desenrolar além de qualquer expectativa ao longo dos dez episódios da primeira temporada de Only Murders in the Building. Os dois Martin – Steve e Short – estão ambos com mais de 70 anos, e vêm de uma escola de comédia que teve seu auge nos anos 1970 e 1980. Parceiros de longa data – estiveram juntos em cena diversas vezes antes, e como esquecê-los como os dois terços de Três Amigos (1986), ao lado de Chevy Chase? Se entendem apenas pela troca de olhares, conhecem bem os pormenores de cada um e não precisam de mais do que alguns segundos para provocarem risos a partir até mesmo das coisas e situações mais insignificantes. Já Selena Gomez tem menos de 30 anos, foi estrela infantil e ícone adolescente da música pop, mas há algum tempo vem demonstrando vontade de se arriscar enquanto atriz, visto suas participações em títulos comandados por Jim Jarmusch (Os Mortos Não Morrem, 2019) e Woody Allen (Um Dia De Chuva em Nova York, 2019), por exemplo. Um trio que tinha tudo para não se equiparar as promessas levantadas, mas que se revela em uma sintonia merecedora de atenção.

A tradução direta seria “apenas assassinatos no prédio”, ou “assassinatos apenas no prédio”, o que melhor se adapta à trama criada por Steve Martin em parceria com John Hoffman (produtor de séries como Grace and Frankie, 2016-2021, e Looking, 2014-2015). Em um condomínio gigantesco no Upper West Side, em Nova York, uma pessoa é morta dentro do próprio apartamento. Tim Kono (Julian Cihi, de The Tick, 2019) não tinha muitos amigos e nem era um tipo dos mais expansivos. Mesmo assim, em um lugar tão pacato, um crime como esse acaba despertando os mais inesperados interesses. Como os vindo do ex-ator Charles-Haden Savage (Martin), do produtor Oliver Putnam (Short) e da jovem Mabel Mora (Gomez), todos vizinhos do rapaz. A partir de uma curiosidade natural, os três descobrem pontos relevantes que, de uma forma ou de outra, acabam por ligá-los ao rapaz. E assim, aliado a um excesso de tempo disponível em mãos – estão todos desempregados, aposentados ou entre ocupações – dão vazão a uma iniciativa que, a despeito de qualquer sentimento contrário, termina por fazer sentido: tocam adiante um podcast, no qual poderão explorar suas teorias conspiratórias e revelar, passo a passo, os detalhes da investigação que dão início na busca pelo assassino.

Mais importante do que a solução do mistério, no entanto, são as relações que se desenvolvem entre eles. Se no começo não passam de estranhos uns aos outros, não mais do que conhecidos que viam até então em elevadores ou corredores do prédio, aos poucos vão se tornando íntimos e imprescindíveis aos seus cotidianos. Aquele que mais se dedica a esse inesperado envolvimento é Oliver, não por acaso o mais carente dos três, tanto em termos concretos – está prestes a ser expulso de casa por dívidas de meses – como também em assuntos afetivos – viúvo há anos, mantém contato distante com o filho único, a quem costuma procurar apenas para pedir dinheiro emprestado. Ele rapidamente se mostra entusiasmado pela ideia do podcast, não apenas alimentando ideias e sugestões para cada episódio, mas também indo atrás de possíveis investidores que apostem na proposta. Ou seja, a ocupação pode lhe ser benéfica em mais de um sentido.

Se por um lado o desenvolvimento de Oliver Putnam revela-se limitado, indo não muito além do uso do ator como alívio cômico para algumas das situações às quais o roteiro trata de envolver os protagonistas, Charles-Haden Savage e Mabel Mora são figuras mais dimensionais, e por isso mesmo, interessantes ao espectador. Há um bom tempo o que Steve Martin se envolve transparece uma grande dose de melancolia, de Garota da Vitrine (2005) a Simplesmente Complicado (2009), entre outros, a ponto de ter praticamente parado de atuar – seu último papel de destaque havia sido em O Grande Ano (2011). Seja pelo passado como estrela popular que caiu no ostracismo, ou pelas possibilidades românticas ao lado da musicista interpretada por Amy Ryan, há nesse personagem um bom material a ser desenvolvido, e mesmo o que é exibido é feito sem possibilitar um viés de esgotamento, permitindo que permaneça um querer mais a seu respeito. Além disso, é também o mais reticente em ir atrás de um provável criminoso, assim como o que mais é afetado em sua vida pessoal pelos eventuais desdobramentos das ações tomadas em conjunto. Um programa apenas com ele talvez não se bastasse, mas é certamente o que mais se aproxima desse caráter.

Por fim, há Selena Gomez, mostrando que pode ser mais do que apenas um ídolo juvenil. Sua presença – além, é claro, do forte apelo popular que desfruta – não apenas preenche uma função importante na trama – afinal, é o elo que irá ligá-los ao passado da vítima – mas também é eficiente em alternar momentos de leveza com outros de inegável peso dramático, seja pelas características distintas que revela ao lado de Putnam e de Savage, mas também a partir do seu histórico pessoal, que servirá para justificar como alguém como ela pode ir morar sozinha em um lugar como o que é empregado como cenário da série. Aliás, mais do que isso. O ‘Arconia’ não é somente um pano de fundo, é quase um personagem por si só, dando espaço para acréscimos pitorescos a cada novo andar. Da síndica ao pessoal da portaria, passando por cada provável vizinho, do terraço ao porão, há muito nele a ser desvendado. Não por acaso, uma nova temporada foi encomendada – é preciso agora torcer para que as novidades que invariavelmente são adicionadas a cada ano em histórias do gênero dessa vez não incluam uma ampliação do seu escopo de atuação.

De novatos como Aaron Dominguez (Palavras nas Paredes do Banheiro, 2020) até veteranos como Nathan Lane e Tina Fey, Only Murders in the Building se mostra uma série inquieta até mesmo quando se imagina estabelecida a sua proposta. Episódios como o sétimo (The Boy from 6B, dirigido por Cherien Dabius, realizadora com passagens por shows como The Sinner, 2017-2018, e Ozark, 2020), feito quase que inteiramente a partir da perspectiva de um personagem surdo, são eficientes não apenas em renovar um interesse passível de esgotamento, mas também em apontar uma criatividade que combina com o tom da narrativa, constantemente preocupada em alternar entre a seriedade do tema abordado – alguém foi morto, afinal – com a leveza assumida desde o começo (trata-se de uma série cômica, enfim). E se no final das contas o clássico “quem matou?” mostra-se um pouco previsível, tal revelação é de menor importância, pois há tanto em jogo que apenas a garantia de que será possível reencontrar essas figuras é suficiente para animar até o mais taciturno dos detetives amadores. Morem eles, ou não, no mesmo edifício.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.

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