Crítica
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Crítica
A última faraó do Egito geralmente é representada nos cinemas como uma mulher de pele clara. Provavelmente, como Jesus Cristo, cuja figura caucasiana de cabelos quase loiros e olhos azuis afronta a realidade histórica. A série documental Rainha Cleópatra toma um caminho oposto neste sentido, não apenas retratando Cleópatra (Adele James) como monarca negra, mas fazendo questão de povoar as encenações ficcionais, que servem para ilustrar os depoimentos de especialistas, com egípcios majoritariamente negros. O barulho que a produção vem fazendo – inclusive com campanas de haters diminuindo as avaliações dela em protesto – tem mais a ver com esse dado de “enegrecimento” do que necessariamente com suas qualidades e/ou defeitos. Mesmo entre os estudiosos não há consenso a respeito da tonalidade da pele da mais famosa (pop?) entre as majestosas rainhas africanas. Dessa forma, por que seria ofensivo ou digno de reprimendas (até mesmo da televisão estatal egípcia) essa imagem da possível negritude da monarca? Décadas de embranquecimento de personalidades importantes, como aconteceu durante anos no Brasil com o escritor Machado de Assis, não resultaram em tanta indignação diante da infidelidade histórica comprovada. Então, por que a perspectiva perfeitamente cabível de Cleópatra negra gera revolta numa atualidade em que a diversidade floresce como valor?
Deixando as polêmicas de lado, cujo motor é mais racista do que o desejo de fazer jus à História, Rainha Cleópatra vem sendo chamada de docudrama, designação um pouco ultrapassada nos nossos tempos em que a noção de documentário ficou mais elástica e porosa à conexão com os dispositivos ficcionais. Docudrama era o conceito antes abundantemente utilizado para designar as produções documentais que utilizavam cenas ficcionais como material ilustrativo. Talvez ainda faça algum sentido chamar assim tais iniciativas, principalmente quando esse dado ficcional é abundante, como neste breve estudo sobre a influência de Cleópatra em sua era. No entanto, aqui vamos nos referir à série explicitamente como documental, uma vez que a dimensão ficcional não contradiz, mas reforça a abordagem documental da personalidade em questão. Feito o preâmbulo que parece necessário para definir a perspectiva da crítica, o que temos do ponto de vista da linguagem é uma minissérie que alia a costura de dados históricos (vindos de cinco especialistas, quatro mulheres e um homem) e a dramatização de episódios importantes da vida dessa mulher. Ela que, antes de encarar o Império Romano e se envolver com dois de seus líderes mais carismáticos, precisou defender a sua posição de herdeira diante de familiares e dos conselheiros destes que conspiraram muito para sua não ascensão ao trono.
Por ser superficial, Rainha Cleópatra pode ser encarada como mera porta de entrada à trama repleta de controvérsias e fatos que ajudaram a moldar os rumos de civilizações antigas. A prioridade do material é enfatizar o poder que a herdeira exerceu como monarca e estrategista ao conduzir o Egito a um período de prosperidade (e protagonismo) num cenário geopolítico caracterizado por invasões, guerras e outros conflitos por supremacia. Quanto à narrativa, de um lado há os especialistas utilizados a fim de dar validação acadêmica à abordagem. Suas falas são costuradas no pior estilo “complete a frase”, ou seja, criando uma falsa ideia de discurso único que, por sua vez, quebra qualquer noção de diversidade de pensamento. Do que adianta termos cinco especialistas múltiplos (duas mulheres negras, duas brancas e um homem negro) comentando passagens da vida de Cleópatra se os enunciados de um servem tão e somente como preâmbulo aos demais? Essa diversidade de estudiosos, então, passa a ser um dado simplesmente visual, pois a narrativa resultante da união de seus conhecimentos visa criar uma ideia inequívoca de consenso. Do outro lado do espectro narrativo, temos o dado ficcional que ora é ilustrativo, ora é especulativo. Ilustrativo, pois é uma projeção da fala dos estudiosos. Especulativo, pois imagina como foram situações entre os acontecimentos capitais daquela Era.
Por exemplo, Rainha Cleópatra imagina o que falaria Cleópatra para o seu amado Marco Antônio (Craig Russell) enquanto eles confabulavam sobre guerra deitados no leito de amor. Essas partes encenadas pretendem conferir espessura humana ao mito encarado pela esfera documental clássica como ente histórico digno de reverência. Nem a defesa acadêmica da perspectiva da ptolomaica Cleópatra como negra ganha o protagonismo. Isso é ressaltado apenas em breves momentos. A prioridade é refazer um percurso histórico de modo eloquente o suficiente para situar a protagonista presente no nosso imaginário como uma figura fundamental das décadas imediatamente anteriores ao nascimento de Jesus Cristo. O elo ficcional é competente (não além disso), mas ao mesmo tempo pobre, pois as encenações não dão ao espectador a dimensão cultural dos elementos a partir de rituais, atitudes e gestos. Desse modo, a ficção é somente uma muleta, mero reforço visual que poderia ganhar autonomia se o aspecto especulativo fosse menos burocrático e restrito a instantes intermediários entre os eventos grandiosos. Nos quatro episódios, cada um com cerca de 40 minutos, temos acesso a um resumo da vida de Cleópatra, encarada como regente pragmática disposta a tudo para defender a sua posição. No entanto, a minissérie a desenha como líder idealista, evitando sublinhar as controvérsias do pragmatismo, como, por exemplo, o efeito de sua altivez para a subsistência dos plebeus na base da pirâmide.
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