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Sinopse

Com o passar dos anos trabalhando no sistema de saúde mental, a jovem enfermeira Mildred Ratched foi se transformando num verdadeiro monstro, chegando a realizar uma série de assassinatos.

Crítica

Se o espectador menos antenado, mas ainda assim curioso, for assistir à Ratched, série criada por Ryan Murphy e o parceiro de ocasião Evan Romansky, esperando encontrar algo sobre as origens ou desdobramentos a respeito da personagem Mildred Ratched, alçada à condição de ícone após sua marcante aparição como antagonista no clássico Um Estranho no Ninho (1975), é certo que a decepção será enorme. Afinal, há muito pouco – para não dizer nada – no programa que possa remeter a audiência à vilã que infernizou a vida de Jack Nicholson mais de quatro décadas atrás. Aliás, o oscarizado trabalho de Louise Fletcher – que, infelizmente, nunca mais em sua carreira conseguiu alcançar o mesma excelência daquele registro – deveria provocar embaraço em Sarah Paulson, que oferece uma composição equivocada e distante da personagem há muito conhecida. Um constrangimento duplo, aliás, não apenas da atriz, mas também do responsável por toda essa bagunça, o próprio Murphy.

Afinal, o showrunner desenvolveu essa atração no meio de uma avalanche de outras lançadas no decorrer do mesmo ano – opções de formato semelhante, como Hollywood T01 (2020) e The Politician T02 (2020), e os longas Boys in the Band (2020) e A Festa de Formatura (2020). E o que é comum a todos, inclusive em Ratched, é um verniz de boas intenções que se esforçam em proteger o resultado desastrado que costuma apresentar. Até começa bem, portanto... mas, logo em seguida, o que se nota é um descarrilhar dos trilhos, enveredando por caminhos suspeitos e convencionais, que apontam mais uma busca pelo choque e pela provocação do que um nítido interesse em oferecer uma boa experiência narrativa. Militante e ativista LGBTQIA+, Ryan Murphy não consegue evitar de inserir em suas histórias questões de cunho sexual, mesmo quando essas pouca afinidade possuem com o tema – como é o caso por aqui. Não há absolutamente nada que indique a natureza da orientação sexual de Mildred Ratched no longa de Milos Forman. Não satisfeito, o produtor atual decide eliminar isso que ele, obviamente, encara como um problema, dotando a personagem de tintas de fetichismo e bissexualidade, apontando para várias direções sem, no entanto, acertar alvo qualquer.

Pois bem, o sabido era o fato de Ratched ser a enfermeira-chefe de uma ala de pacientes em um hospital psiquiátrico. Nessa versão 2020, ela ainda está em início de carreira, e o foco está na sua chegada à instituição que talvez venha a ser aquela vista no romance de Ken Kesey. Há outras presenças de autoridade em cena, aquelas que logo percebe que terá que se aliar – ou eliminar – caso ambicione ter algum poder por ali. Agora, antes disso, há uma questão a ser resolvida: o que a motiva não apenas a se direcionar a tal lugar, mas também a almejar tal posição de controle? No citado Um Estranho no Ninho, a primeira aparição da personagem – ainda que, cronologicamente, os eventos mostrados no filme se passem após aos vistos na série – ela aparenta estar confortável com o status adquirido, se deparando com um distúrbio apenas a partir da chegada de um novo interno. Aqui, por sua vez, possui uma agenda muito específica – e um tanto aleatória, digamos: livrar o irmão de criação de uma condenação de morte.

Sim, pois ao contrário do que se poderia imaginar, a Ratched de Ryan Murphy está menos interessada com o que se passa dentro do hospital, e mais focada em episódios ocorridos fora da instituição. A começar, há o assassino serial Edmund Tolleson (Finn Wittrock, sucumbindo à força de uma imagem de impacto, deixando de lado qualquer possível profundidade naquela que poderia ser outra figura enigmática da trama), que após matar diversos padres, é enviado para que suas condições mentais sejam avaliadas. A intenção é verificar se há condições de julgá-lo como uma pessoa comum, ou se sofre de algum distúrbio que necessite um tratamento psiquiátrico. Como se pode perceber, essa é a mesma motivação por trás da internação de McMurphy (Nicholson). A maneira como cada diretor aborda esse elemento, porém, acaba por fazer a diferença: se antes a intenção era mostrar que a loucura era apenas um fator a ser interpretado como tal (ou não), aqui ela está sempre presente, a um passo de cada um, como uma porta de salvação de todos os pecados. No filme, portanto, todos poderiam muito bem ser sãos. Exatamente o contrário do que se verifica na série.

Se os desenlaces envolvendo os crimes de Tolleson são tão desnecessários quanto os acontecimentos ligados ao diretor do hospital, o dr. Hanover (Jon Jon Briones, outro favorito de Murphy, visto também em American Crime Story, 2018, e em American Horror Story, 2018, outros programas do produtor), tais circunstâncias servem apenas para desperdiçar algumas presenças de destaque, como Hunter Parrish, Brandon Flynn, Rosanna Arquette e, principalmente, Sharon Stone (uma presença glamourosa, porém descartável). O festival de excessos segue com as inserções de Charlie Carver (o que faz o enfermeiro de rosto deformado?), Corey Stoll (eliminado de modo vergonhoso) e Vincent D’Onofrio (imponente, mas irrelevante). Outras figuras, como Sophie Okonedo, Amanda Plummer e Cynthia Nixon até possuem uma maior relevância, mas o roteiro é tão mal construído que nem mesmo as participações delas – algumas chegam a ter capítulos inteiros dedicados aos seus históricos – acabam por fazer diferença, resultando mais em um ruído do que em qualquer outra coisa.

No fim, tudo se resume à senhora Paulson e suas tensões, seja junto à inimiga-transformada-em-aliada (Judy Davis), ao irmão-que-vira-assombração (Wittrock) ou a estranha-que-se-assume-como-amante (Nixon). A insegurança da atriz em transitar por cada uma dessas leituras a afasta cada vez mais da perfeição alcançada por Fletcher. Hesitante, frágil e assustada, Paulson vai, no decorrer dos oito episódios dessa primeira temporada, se mostrando cada vez mais longe do tipo temido e exaltado por cinéfilos e admiradores ao longo dos anos. Um desempenho que tanto aponta para uma postura incapaz de se impor (eterna coadjuvante, ela sofre para se apresentar como protagonista), como também para a armadilha aprontada pelo realizador, que a colocou no meio de uma fogueira das vaidades da qual ninguém consegue sair, ao menos, chamuscado. Um desastre anunciado que se confirma como um projetos mais irregulares e decepcionantes de toda a já problemática trajetória de Ryan Murphy.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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