Crítica


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Sinopse

Rick Sanchez é um cientista genial e alcoólatra que foi morar com a família de sua filha Beth, uma cirurgiã cardíaca de equinos. Ele divide seu tempo entre desenvolver projetos altamente tecnológicos em seu laboratório (garagem da casa de Beth) e levar seu neto de 14 anos Morty em aventuras perigosas e surreais pelo Multiverso. Combinados com tensões preexistentes dentro da família, esses eventos causam ao sensível Morty muito angústia em casa e na escola.

Crítica

Desde o seu lançamento em 2013, Rick & Morty angariou uma boa parcela de fãs e, como acontece em qualquer fandom, muitos deles tornaram-se radicais, afirmando sobre a série coisas como: “ela é só pros inteligentes” e “precisa ter QI alto para entender o humor sofisticado”. Por outro lado, algumas semanas antes da publicação deste texto, adoradores da animação fizeram algazarra e brigaram nas portas de redes de fast food atrás do tal molho szechuan oferecido pelo McDonalds na época da estreia de Mulan (1998), apenas porque o protagonista Rick o enaltece já no primeiro episódio desta terceira temporada. Parece que, ironicamente, os apreciadores mais fanáticos do seriado falharam em compreender uma das frases menos engraçadas e, ainda assim, uma das mais certeiras e literais já ditas pelo seu personagem principal, apenas há algumas temporadas atrás: “Pense por você mesmo, não seja uma ovelha”. O cientista, entretanto, não ficaria desapontado ao saber desses eventos; meramente constataria, entediado, que seu desprezo pela existência de vida no universo é justificado.

E quem pode culpá-lo? Nesta semana: um atentado na Somália que matou um número recorde de pessoas foi ignorado pelas grandes manchetes internacionais, pois as vítimas não eram brancas; o sistema político no Brasil devolveu o cargo de senador a um homem que foi gravado planejando a morte de outra pessoa e que admitiu em áudio estar envolvido em esquemas de corrupção; as leis que deveriam impedir a existência de condições de trabalho análogas às da escravidão foram afrouxadas. Só para citar alguns exemplos. Por isso que em suas duas temporadas anteriores, Rick & Morty se mostrou uma obra tão coesa e eficiente, pois conseguia estabelecer que o niilismo intrínseco a seu (anti)herói era um resultado natural de sua percepção de que seres tão inteligentes quanto os humanos, tendem, na verdade, à estupidez coletiva porque centram seus esforços em si mesmos e ignoram o fato de serem efêmeros e pouco expressivos frente à vastidão do universo. Porém, ao contrário do que alguns defensores fanáticos do seriado podem exaltar, a animação não exige um pessimismo absoluto para ser aproveitada a fundo. Muito pelo contrário, compreender que essa reflexão melancólica leva, de outro modo, a uma empatia com nossos colegas de espécie é entender também porque o humor aqui funciona tão bem, uma vez que os criadores de R&M, Dan Harmon e Justin Roiland, conseguem nos fazer identificar, naqueles personagens e situações, sentimentos e abstrações inerentes a qualquer ser humano – em especial àqueles vivendo tempos tão céticos e sombrios quanto o nosso.

Ou seja: a toxidade do pessimismo é importante para abafar nosso ego, mas é preciso um equilíbrio disso com a empatia para que a convivência pacífica e prolífera seja possível – e desse ponto de vista, Rest and Ricklaxation, ao dividir Rick e Morty entre suas versões saudáveis e aquelas tóxicas, traz um roteiro pronto a rebater os próprios fãs mais intolerantes do programa.

Sim, Rick & Morty é cínico e muitas vezes escatológico, mas também não os somos? Quem usa esses aspectos como demérito à série pode não perceber que o hommo sapiens não é o espécime mais honesto e nobre que existe na Terra. Aliás, somos na verdade cada vez mais desonestos e brutais, ainda que essas características tenham assumido um caráter mais evidente e dissimulado com a modernidade. Por isso, provavelmente, Pickle Rick seja um dos episódios mais memoráveis desta terceira temporada, já que provoca o riso a partir do absurdo exponencial que nos impõe. Claro, na camada mais superficial, é divertido rir do egocêntrico Rick se transformar num picles para evitar uma sessão de terapia em família; porém, o que torna a narrativa desse capítulo tão magnética é a quebra de uma suspensão de realidade que acontece mesmo dentro dos parâmetros do seriado, e que nos desafia a comprar o inusitado e fantasioso como algo literal e objetivo – e que os eventos dessa aventura girem em torno de muita violência, nudez e uma conversa dolorosamente honesta entre os Smith, não é por acaso.

Aliás, é admirável que mesmo se ignorarmos todas as leituras e “filosofadas” possíveis, o seriado ainda é uma coletânea de aventuras que divertem e magnetizam pelo seu ritmo e criatividade, aparentemente inesgotável. E se na primeira temporada era evidente que Harmon e Roiland tentavam fazer com que cada um dos capítulos se dedicasse a ter como guia uma paródia, criando sustentação para os seus absurdos, aqui é admirável como a série já assumiu uma independência quase total, e apenas dois argumentos desta terceira temporada são sátiras descaradas; aquele que usa os filmes Mad Max como base para desenvolver uma relação entre Morty e um… braço (!?), ou aquele que reúne um supertime de heróis intergaláticos no estilo Guardiões da Galáxia (2014) só para jogá-los em uma trama da franquia Jogos Mortais. Isso demonstra que os criadores, já muito mais seguros de seu material, conseguiram encontraram a essência de sua narrativa e se arriscam agora cada vez mais na originalidade como carro chefe.

O que resultou naquele que é, provavelmente, o melhor momento de todo o seriado até agora; The Ricklantis Mixup dá continuidade à trama de um personagem introduzido há duas temporadas atrás, explorando um mundo habitado apenas por Ricks e Mortys de diversas dimensões e que cria a partir disso uma analogia social sobre ideologias divergentes, similar àquela feita por Zootopia (2016). Sendo, ainda assim, interessante como o episódio consegue se construir a partir de referências discretas à Conta Comigo (1985), Dia de Treinamento (2001), Jogos Vorazes, 1984 (1984), entre outras, que surgem complementando a trama, ou seja, levando sua carga temática para a discussão do capítulo, sem jamais assumir o viés de alusões gratuitas.

Harmon e Roiland, aliás, parecem empenhados em criar essas subjacências, pois quase todos os episódios desta terceira temporada são densos de conceitos. O que, por fim, faz desta a temporada a mais coesa até agora – mesmo os capítulos menos intensos e criativos ainda são divertidos o suficiente para justificarem sua existência, como o último, que traz de volta o Presidente dos Estados Unidos numa participação que apenas falha por não ser tão absurda quanto a realidade, que tem Donald Trump na Casa Branca. E levando em conta que o programa já havia entregado duas levas surpreendentemente eficientes de episódios, é impressionante como este terceiro ano é hábil em expandir (ainda mais) o universo avançar a trama de Rick & Morty de modo a manter suas aventuras funcionando em si mesmas – e é engraçado perceber que, apesar da inventividade dos percalços psicodélicos dos protagonistas, é sua vida comum e familiar que serve de estrutura base para criar um arco de início, meio e fim. Isso ressalta, com inteligência e sutileza, aliás, que por mais intelectual, profunda e empolgante que seja a série, o puro niilismo não deveria ser o resultado último de experimentarmos a nossa efemeridade em meio ao caótico e vasto cosmos a nossa volta; tampouco a supervalorização das nossas singularidades em meio a esta diversidade – mas, quem sabe, uma dosagem calculada entre ambos possa nos impulsionar em aventuras malucas sem esquecermos de que outras pessoas precisam viver as delas também, já que dividimos todos juntos esse curto e insignificante espaço-tempo.

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é formado em Produção Audiovisual pela PUCRS, é crítico e comentarista de cinema - e eventualmente escritor, no blog “Classe de Cinema” (classedecinema.blogspot.com.br). Fascinado por História e consumidor voraz de literatura (incluindo HQ’s!), jornalismo, filmes, seriados e arte em geral.
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