Crítica


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Sinopse

Na Coreia do Sul, centenas de pessoas em grave dificuldade financeira são abordadas por um sujeito misterioso, prometendo oferecer bilhões de wones em recompensa, caso aceitem participar de uma série de jogos. Desesperadas, as pessoas aceitam a proposta, até descobrirem que estão dentro de uma gincana mortal em seis partes, onde os perdedores de cada rodada são assassinados.

Crítica

Pessoas acordam dentro de uma gincana misteriosa que promete oferecer bilhões de wones (milhões de reais) aos vencedores. A premissa de Round 06 pode se assemelhar a outros filmes sobre combates letais visando o entretenimento geral da nação - ou de um grupo sádico de empresários -, o que vai desde o clássico Battle Royale (2000) até o recente, e menos sangrento, Jogos Vorazes (2012 - 2015). No entanto, a premissa da série sul-coreana atenua o maniqueísmo e acentua a complexidade em relação aos antecessores, por brincar cinicamente com os conceitos de livre arbítrio, democracia e igualdade de oportunidades. No caso, os habitantes em crise financeira são convidados a participar dos jogos, podendo aceitar ou recusar a proposta. Adiante, recebem o direito, respeitado pela organização, de abandonar a disputa letal caso a maioria opte pela desistência. Todos recebem tratamento idêntico, e são impedidos de usufruir de qualquer vantagem ao longo das etapas, o que gera graves punições àqueles que buscam driblar estes princípios. Nas palavras dos produtores secretos, trata-se de uma tentativa de equiparar pessoas de diferentes idades, gêneros, origens e classes sociais, dentro de um sistema onde a vitória dependeria unicamente do esforço pessoal. Afinal, “eles já sofreram muito com a desigualdade lá fora”, clama a voz de um superior. Nobre intenção, certo?

Ora, os nove episódios se destinam a contestar o mito da meritocracia, partindo do pressuposto que uma estrutura social é formada por subjetividades distintas, e que efeitos de massa (e pressões psicológicas em grupo) surtem efeitos específicos dependendo da situação de cada participante. É inviável falar em liberdade de escolha quando as pessoas se sujeitam a morrer porque, de volta às vidas cotidianas, teriam uma situação ainda pior. De pequenos comerciantes a empresários corruptos, passando por médicos com processos por negligência e adolescentes que herdaram a dívida dos pais, os jogadores são movidos pela falta de escolha, ao invés da ampla possibilidade de caminhos a tomar. As atividades infantis, do cabo de guerra à bolinha de gude, exigem ora força, ora capacidade motora inviável a pessoas idosas e/ou fragilizadas. A tensão das disputas, a comida restrita, o estímulo à competição interna provoca um nível de estresse que acentua atitudes extremas. Em outras palavras, o campo escondido jamais representaria uma bolha de sociedade justa e utópica porque funciona sob regras exploratórias (caso o colega morra, o valor disputado pelos restantes de torna maior) e distintas daquelas regendo a comunidade lá fora. A ideia de competição em meio capitalista (ou seja, visando um prêmio pela sobrevivência do mais forte) adquire contornos assumidamente grotescos para fins de suspense e crítica política.

O resultado funciona, na maior parte do tempo. Os episódios iniciais se focam nos conflitos relacionados à desigualdade e à dificuldade em acatar normas absurdas impostas pelo Líder. A votação pelo possível abandono dos jogos e as consequências do pleito resultam nos instantes mais amargos da temporada, quando os criadores discutem até que ponto estamos dispostos a abrir mão de nossa integridade física e moral em nome do dinheiro. Em tempos de precarização, neste Brasil onde preços aumentaram e pessoas morreram exageradamente por uma doença que poderia ter sido controlada, a metáfora soa bastante próxima. O piloto da série, em particular, carrega uma ironia potente através de Batatinha Frita, 1, 2, 3, uma espécie de corrida onde os participantes são fuzilados às dezenas, em câmera lenta, com sangue jorrando pelos ares e os corpos se debatendo sobre o chão de areia. A retirada do som direto, substituído pela trilha sonora clássica durante a matança, reforça o absurdo deste balé de corpos executados sem remorso. A própria disposição de colocar adultos em uniformes de aparência escolar (ao invés dos típicos uniformes de prisão), participando de brincadeiras infantis que lhes custam a sobrevivência, sublinha a humilhação por que passam. Quanto mais um participante sobrevive, mais objetificado e ridicularizado se torna. Os vencedores, no final, também são perdedores no que diz respeito aos valores humanos - algo que os finalistas percebem da pior maneira possível.

Atenção: possíveis spoilers a seguir.
No entanto, a discussão sociológica adquire aspectos morais e moralistas, até uma conclusão próxima da fábula religiosa de Natal. Passadas as duas primeiras provas, a distinção de classes e origens perde relevância, e o roteiro se concentra nos valores da amizade, resiliência, lealdade, amor próprio e ao próximo. Intrigas entre colegas, traição entre parceiros e promessas não cumpridas constituem o motor da segunda metade, quando desenham-se vilões perversos versus vítimas sofredoras. A chegada dos VIPS (os reais financiadores da empreitada) mira a extravagância, porém atinge apenas a caricatura grosseira da exploração capitalista ao transformar os malvados num grupo de homens gays usando máscaras de animais cravejadas de pedras preciosas. (Junto de Jogos Vorazes, seria interessante pesquisar porque as competições mortais da ficção estão diretamente associadas ao imaginário kitsch). A premissa das disputas infantis se rompe com a prova da ponte de cristal, sem que isso seja justificado dentro da narrativa. As competições ainda possuem grande impacto emocional, mas nenhuma delas reproduz a força imagética de Batatinha Frita 1, 2, 3. O sexto e último desafio, correspondente ao ápice da história, soa anticlimático por substituir a engenhosidade das provas à mera troca de socos em terreno aberto. No final, um pregador religioso aparece em cena, uma grande cruz vermelha reforça o aspecto cristão, e o discurso da caridade se sobrepõe àquele da exploração capitalista. A série começa atacando a maldade dos detentores do poder, para se concluir com a má índole daqueles que deixam de ajudar o próximo. O empresariado jamais sofrerá consequências simbólicas ou concretas por seus atos.

Round 6 se encerra com pontas soltas e motivações improváveis, visando a explicação numa segunda temporada. Seria importante compreender os objetivos do líder (Lee Byung-hul) em permanecer à frente da organização; ou de Seong Gi-hun (Jung-jae Lee) quanto à inesperada decisão final. Mirando o fator surpresa, as últimas cenas tornam muitos acontecimentos prévios inverossímeis; enquanto o roteiro evita contextualizar a prática abusiva dentro de um contexto social amplo: se os jogos ocorrem há décadas, como ninguém suspeitou de sua existência, ou de inúmeros sequestros e mortes sem explicação pelo mundo? Como puderam calar as pessoas que saíram vivas do processo, e preservar o segredo da instituição? De que maneira funciona o esquema de venda de órgãos, e de que modo o policial se movia tão facilmente entre espaços secretos? Por que o controle das imagens de segurança ficava a cargo de uma única pessoa, capaz de apagá-las com tamanha rapidez? Por que insistir em símbolos sem importância para a sequência dos conflitos, a exemplo da tampa do sistema de ventilação mal fechada, ou das portas em cores pasteis que não levam a lugar algum? Como tantas salas escondidas permanecem abertas, e os arquivos, acessíveis? De que maneira são recrutados os funcionários, e que conhecimento prévio possuem a respeito do trabalho que desempenharão lá dentro? Essas perguntas vão além de um gancho para a sequência, sendo lacunas que precisariam ser preenchidas para sustentar a lógica da fantasia.

Pelo menos, o projeto é eficaz em termos de construção de personagem e manutenção do suspense. Embora seja óbvio que os protagonistas sobreviverão às sucessivas etapas (e que os coadjuvantes morrerão assim que a câmera os filma), é difícil imaginar quais caminhos precisarão percorrer até o triunfo. O painel de temperamentos contrastantes proporciona ótimo embate cênico entre figuras bem delineadas e interpretadas: para cada estereótipo incômodo (o imigrante paquistanês servil demais), existem várias figuras complexas, a exemplo do protagonista (Jung-jae Lee), capaz de despertar empatia mesmo sendo um filho aproveitador e preguiçoso, e a brutal Kang Sae-byeok (Hoyeon Jung), que demonstra intensa transformação ao longo da trama. Talvez a série se apoie excessivamente na mecânica da humanização através do sofrimento, algo que condiz com sua vertente cristã - conforme são ameaçados e torturados, os participantes passam a valorizar suas famílias e amigos -, no entanto, ainda configura uma fábula política propensa a discussões. O roteiro é certamente crítico ao dispositivo dos jogos, mas, estaria ele próprio se divertindo, e propondo ao espectador diversão equivalente, a partir da exploração alheia? Seríamos nós, espectadores, os verdadeiros empresários mascarados, observando com prazer os assassinatos impiedosos? O projeto não vai longe nesta discussão, entretanto, abre portas para questionar a posição de espectatorialidade e nossa responsabilidade ética diante da dor alheia.

PS: O título original, Squid Game, seria traduzido como Jogo da Lula em português - uma atividade infantil que possui importância fundamental à história. Ora, talvez a presença do nome “Lula" num projeto popular tenha soado inviável à Netflix Brasil, que preferiu outro nome em inglês. Vivemos tempos estranhos.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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