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Sinopse

Em Ruptura, os funcionários do escritório da Lumon Industries tiveram suas memórias separadas cirurgicamente entre o trabalho e a vida pessoal. Esse ousado experimento passa a ser questionado por Mark, o líder dos subalternos. Nesta segunda temporada, Mark fica ainda mais próximo de uma verdade escondida a sete chaves pela empresa e precisará lidar com seu interno para cumprir uma missão. Ficção Científica.

Crítica

A primeira temporada de Ruptura foi sensacional. Nela conhecemos um mundo onde as pessoas podem se submeter a um procedimento capaz de cria novas personalidades exclusivamente para o ambiente de trabalho. O chamado interno é um ser novo, uma existência alimentada unicamente pelas experiências no andar misterioso da empresa Lumon. Já a personalidade original assume de volta o corpo assim que o funcionário toma o elevador para sair do prédio do trabalho. As memórias entre as duas personalidades nunca são compartilhadas. Mark (Adam Scott) decidiu se submeter a isso para ter ao menos oito horas de descanso do luto dilacerante. Ao menos na jornada profissional ele não estará sofrendo pela recente morte de sua esposa num acidente de carro. Portanto, o personagem encara a ruptura como um dispositivo anestesiante. E como passamos mais tempo na companhia de Mark S., o interno, para nós ele é o verdadeiro protagonista da série cuja primeira temporada permite uma inteligente e minuciosa descoberta do funcionamento dessa realidade e dos personagens que nela habitam. A grande questão dos primeiros episódios do programa era quebrar a barreira entre internos e externos, isso enquanto nos propunham refletir sobre questões filosóficas existenciais implícitas à premissa genial. Após a irretocável temporada inaugural, ficou a grande pergunta: a segunda chegará ao menos perto?

Na segunda temporada de Ruptura parece que os criadores incorporam ao comportamento institucional da empresa Lumon a máxima do romance O Leopardo, de Giuseppe Tomasi di Lampedusa: “algo deve mudar para tudo continuar como está”. Isso porque as rachaduras criadas pelos personagens curiosos nessa, até então hermeticamente fechada, conexão entre mundo interno e externo são tratadas pela corporação como acidentes de percurso incapazes de comprometer o refinamento de macrodados da equipe chefiada por Mark S. O que poderia ocasionar uma revolução logo é tratado pela empresa como “uma bem-vinda adequação”. No entanto, como descobrimos ao longo dos episódios, as fissuras são apenas a ponta do iceberg. Os criadores expandem a mitologia exatamente por conta dos efeitos da comunicação entre internos e externos. Por sua vez, a Lumon percebe que não há como voltar atrás em certas coisas, então finge que o acesso ao exterior pode ser um benefício, quase como se fosse um plano de saúde ou um vale-alimentação. Para acalmar o ímpeto intrigante de Dylan (Zach Cherry), por exemplo, a corporação permite que a esposa do seu externo o visite periodicamente. E isso dá a ele uma sensação de satisfação capaz de aplacar momentaneamente a sua revolta. Assim como Dylan, todos os coadjuvantes ganham espessura dramática na continuação também excepcional.

O exílio de Cobel (Patricia Arquette) abre espaço para Milchick (Tramell Tillman) ganhar terreno como gerente do andar no qual os personagens principais trabalham. E o ator aproveita cada segundo para desenvolver um chefe ainda mais complexo do que ele era na primeira temporada como braço direito. Destacam-se os instantes em que Milchick leva bronca de algum figurão da Lumon, seja por sua incapacidade de controlar os funcionários ou mesmo por conta da mania de utilizar palavras difíceis na comunicação diária. Milchick oscila perigosamente (para a Lumon) entre a obediência cega, o cumprimento dedicado do propósito e uma profunda insatisfação com os superiores que sequer reconhecem os seus esforços. Dá para imaginar que no futuro ele possa simplesmente explodir e se tornar um aliado de Mark S., assim como vimos Cobel fazer nos episódios derradeiros? É possível, afinal de contas a ex-chefe também era uma obediente fanática que não suportou a forma como a empresa a tratou. Aliás, nos dois casos temos personagens frustrados em virtude da falta de respaldo da firma que não valoriza as suas dedicações e, portanto, as transformam em desobediências. Por sua vez, Irving (John Turturro) se torna uma figura mais do mundo externo (sobretudo depois de uma despedida emocionante dos colegas internos). E a relação com Burt (Christopher Walken) abre novos questionamentos.

Os criadores de Ruptura atingiram um equilíbrio muito perspicaz nessa segunda temporada entre responder certos questionamentos propostos na primeira leva de episódios e criar novos mistérios à medida que expandem a mitologia. Por exemplo, descobrimos no genial episódio final para que servem os macrodados, os números refinados pelos personagens principais enquanto eles estão na Lumon. No entanto, saber disso não resolve completamente os enigmas em torno da operação que envolve o sequestro de pessoas amadas e a criação de personalidades antes que humanos sejam sacrificados. Por quê? Em nome de quem? Com qual propósito? Descobrimos também quem foi a inventora do método ruptura, ou seja, é exposta a fraude que tem a ver com os administradores da Lumon. Mas, será que essa verdadeira criadora está disposta a demolir o reino que ajudou a erguer ou está em busca de uma brecha para assumir o comando? Afinal, com que intuito ela moldou a ruptura? Os responsáveis pela série não saíram respondendo todas as interrogações de antes, mas conseguiram nos oferecer boas explicações que, por sua vez, deram base para ainda mais questionamentos. Do tipo, qual a implicação emocional do envolvimento que Mark S. teve com a externa de Helly R. (Britt Lower)? E que tal a revolução ser liderada justamente por uma interna que teria sido identificada como dona do dom do Kier?

Na medida em que mostra a Lumon cada vez mais como uma instituição onde se fundem o fanatismo religioso e a utilização pouco ética da tecnologia, Ruptura também se aprofunda nos grandes dilemas de Mark. Interpretado brilhantemente por Adam Scott, ele está em busca da esposa feita prisioneira pela Lumon, mas sabe que é quase impossível entrar e promover um resgate espetacular. Para isso acontecer, no mínimo tem de contar com a ajuda de seu assustado interno. E no último episódio da segunda temporada há finalmente um diálogo entre os dois. O papo começa com a manifestação de uma curiosidade compartilhada e vai descambando para uma animosidade que aponta um ótimo caminho para a já confirmada terceira temporada. Afinal de contas, dependendo do que acontece, caso a independência da Lumon realmente venha, Mark S. pode simplesmente desaparecer. Não há garantias de que na reintegração (a retirada do chip da ruptura) as memórias do interno sobrevivam. Portanto, derrotar a Lumon pode significar a morte para essa personalidade criada exclusivamente ao trabalho. No entanto, pensando no futuro, o mais inteligente foi criar um antagonismo entre interno e externo em virtude de seus amores. Até porque, no fim das contas, por mais que a trama de mistério com toques de horror e sci-fi seja instigante, cada vez fica mais claro que essa é uma história de amor.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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