Crítica


8

Leitores


1 voto 8

Sinopse

Cinco professores resistem à péssima infraestrutura da escola onde lecionam, no turno da noite, ao abandono institucional e à falta de reconhecimento e renovam cotidianamente a fé no trabalho que realizam. Os alunos, por sua vez, encaram demandas bastante particulares para continuar sonhando com dias melhores.

Crítica

Ainda bem que a teledramaturgia da Rede Globo não mais vive apenas de histórias ambientadas no Leblon, região nobre do Rio de Janeiro. De uns tempos para cá, atendendo aos anseios por uma representação menos restrita, a maior rede de televisão da América Latina tem voltado os olhos para histórias transcorridas em estratos sociais diversos, às vezes ainda estereotipando e/ou romantizando, mas eventualmente acertando no tom e nas pautas. Este é o caso de Segunda Chamada, cuja primeira temporada é passada quase integralmente nos limites da escola Carolina Maria de Jesus. A homenagem à importante escritora brasileira já é um pequeno, mas claro, indício das intenções políticas da produção. O turno é o da noite, os alunos, jovens e adultos, em sua maioria, são carentes de recursos financeiros, cientes de que o conhecimento é determinante na luta contra uma ordem que valoriza a meritocracia a fim de conservar discrepâncias e abismos sociais.

Cada matriculado ali tem uma história para contar, alude a um problema específico, dos que passariam longe das contendas burguesas escritas por Manoel Carlos. Nos primeiros episódios, ainda que dramaturgicamente consistentes e corajosos, há o resquício de um esquematismo formal contumaz na televisão, com problemas complexos sendo resolvidos ao fim de cada fração com uma rapidez e conveniência nem sempre orgânicas. É o que acontece, por exemplo, quando a transexual Natasha (Linn da Quebrada) sofre preconceito de uma senhora evangélica que não a admite no banheiro feminino. Há um arco suficientemente forte, que coloca o dedo na ferida do preconceito, especialmente o atrelado às convicções religiosas. A conciliação vem rápido demais, mas é importante sinalizar que os tópicos se entrelaçam bem. As mensagens são dadas, postas numa mesa menos empolada e mais realista, na qual as pessoas são vítimas das suas falhas e/ou das circunstâncias.

Lúcia (Débora Bloch), a professora idealista, precisa conviver com a ignorância quanto aos eventos que antecederam a morte trágica de seu filho adolescente. Um pouco a fim de mitigar a culpa, outro tanto por força de sua personalidade aguerrida e naturalmente solidária, ela abraça frequentemente os problemas dos alunos como se fossem seus, espelhando assim o trabalho de muitos educadores da vida real, sobretudo os que encaram diariamente as faces da miserabilidade e da violência. Aliás, a brutalidade é uma constante em Segunda Chamada, seja pela via da intolerância – como se vê, também, na dificuldade de aceitação dos estrangeiros fazendo sucesso com a venda de suas comidas típicas, diante da fé alheia –, ou a promovida automaticamente por aqueles aparentemente perdidos para o tráfico de drogas. Mas não são somente os frequentadores dos bancos escolares os atravessados por um sem número de infortúnios graves e repetidos.

Os professores do Carolina Maria de Jesus também carregam estigmas, desenhados longe de um romantismo exacerbado. Jaci (Paulo Gorgulho) é o diretor que precisa mediar questões constantes enquanto tenta dar um jeito na própria vida afetiva; Solange (Hermila Guedes) enfrenta a agressividade do marido desempregado e busca alívio em drogas ilícitas compradas no mercado informal; Eliete (Thalita Carauta) é a incansável que leciona matemática e lida com as turbulências a partir de uma resolutividade impressionante; Marco André (Silvio Guindane) é o jovem relativamente abastado, filho adotivo que toma para si a missão de inserir arte no dia a dia dos alunos atravessados por tantos perrengues sérios. A forma como Segunda Chamada articula as demandas dessa gente, sutilmente borrando limites e fronteiras hierárquicas, mostrando-os enquanto igualmente afetados pelo mundo desigual, cheio de durezas, é um dos grandes achados dessa série comovente.

Segunda Chamada não é boa somente por encarar desbragadamente assuntos espinhosos, tais como aborto, xenofobia, homofobia, racismo, intolerância religiosa, reinserção social de apenados, moralismos e afins. Sua força está na maturidade ao peitar essas questões, ao distanciar-se o quanto pode de lugares-comuns e reducionismos, atentando para a complexidade dos tecidos sociais, aos abismos que a pobreza extrema trata de cavar e aumentar com o passar do tempo. Ações desesperadas por falta do que colocar na mesa, atitudes ambíguas, gestos nem sempre heroicos ou exemplares, tudo isso está na base dessa visão ampla e muitas vezes contundente, que vai sendo crescentemente assentada numa narrativa menos esquemática e, portanto, focada naquilo que lhe engrandece, ou seja, nos personagens. O elenco está uniformemente bem, com lampejos de excelência e participações belíssimas, vide as poucas, mas cortantes manifestações do morador de rua vivido por José Dumont. Um programa para acompanhar bem de perto. E que venha logo a segunda temporada.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
avatar
Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.