Crítica


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Sinopse

Senna segue a trajetória de superação, desencontros, alegrias e tristezas de Ayrton (Gabriel Leone), desbravando sua personalidade e suas relações pessoais. A história começa com o início da carreira automobilística do tricampeão de Fórmula 1, do kart à sua mudança para a Inglaterra para competir na Fórmula Ford, e segue até o trágico acidente em Ímola, na Itália, durante o Grande Prêmio de San Marino.

Crítica

Quando alguém morre há uma espécie de canonização automática. Os defeitos do falecido passam a ser secundários, enquanto as virtudes são utilizadas como combustível da saudade. E esse processo tende a ser acentuado quando um ícone se vai. Ayrton Senna foi, de acordo com incontáveis especialistas, o grande nome do automobilismo de todos os tempos. Piloto arrojado e técnico, elevou a bandeira brasileira ao ponto mais alto de pódios espalhados pelo mundo durante vários anos, funcionando como uma espécie de embaixador de nosso orgulho nacional. Somente quem acompanhou a trajetória do piloto, às vezes acordando de madrugada para assistir às corridas que aconteciam do outro lado do mundo, e vibrou com cada manobra aparentemente impossível, sabe o que Ayrton representou à nação. Então, no fatídico dia 1º de maio de 1994, ao perder o controle do carro numa das curvas mais desafiadoras do circuito de Ímola, na Itália, Ayrton acabou morrendo e, de ícone, passou a ser lenda. Senna, a minissérie ficcional que reconta toda a trajetória desse astro do esporte em seis episódios com cerca de 50 minutos cada é mais um tijolinho na preservação do status legendário. Trata-se de uma biografia que romantiza o personagem acima de tudo, sendo um prato cheio aos saudosistas e uma forma de renovar o interesse global por um personagem tão importante do automobilismo mundial.

Vamos começar neste texto pelas coisas boas de Senna. As dramatizações das corridas são impressionantes. Parte essencial da minissérie, os embates que Ayrton travou nos mais diversos circuitos são recriados priorizando a emoção. Não se trata apenas de colocar carros digladiando volta a volta para ver quem chega antes, mas de representar a adrenalina de cada troca de marcha, da decisão de pisar duas vezes rapidamente no acelerador para obter ganho do motor e de acertar o momento de fazer uma manobra arriscada que garanta a vitória. Os diretores Vicente Amorim, Julia Rezende e Marcelo Siqueira são muito bem-sucedidos ao celebrar o automobilismo como um esporte no qual tudo está sempre à flor da pele, em que os instintos dos pilotos são tão fundamentais quanto a técnica. Uma menção honrosa também à equipe de montagem, cujo trabalho é fundamental para aquilo que o programa tem de melhor: a capacidade de transmitir ao espectador as emoções em jogo durante uma corrida onde pilotos arriscam a vida em troca de glória. Nesse sentido, uma das sequências mais empolgantes é a quase vitória do novato Ayrton no circuito de Mônaco quando pilotava um carro bastante inferior ao de seus concorrentes diretos. Em determinado momento da prova, o brasileiro transcende a percepção normal e se conecta com a máquina como se ela fosse a extensão de sua existência.

Mas, nem tudo são flores em Senna. Embora tenha um ritmo bom e não permita qualquer traço de monotonia, a minissérie é frágil no que diz respeito à construção dos personagens, ou seja, ao aspecto humano. A começar pelo próprio Senna (Gabriel Leone), desde o começo visto como sujeito notável, o herói de armadura brilhante. Suas controvérsias são sempre convertidas em virtudes, o que denota um olhar absolutamente canonizador por parte dos idealizadores do programa. Senna é visto em muitos momentos tendo atitudes egoístas, quebrando contratos amorosos e profissionais em função de sua ambição desmedida. E em vez de a série tratar isso com a complexidade que cabe aos humanos, prefere observá-las como linhas tortas pelas quais Ayrton sempre escrevia certo. Ao romper com a esposa, ele é não encarado como homem autocentrado, mas como alguém que fará de tudo, inclusive sacrifícios pessoais, para chegar ao seu objetivo máximo de ser campeão da Fórmula 1. Mais adiante acontece algo parecido quando ele simplesmente abandona a equipe pequena para galgar degraus na categoria. O chefe preterido até ameaça contestar moralmente a decisão do piloto, mas se rende ao conformismo do “o melhor piloto busca o melhor carro”. Senna é incessantemente elogiado, mesmo quando toma decisões que poderiam o tornar mais intrigante se não fossem artificialmente desculpadas.

Ainda sobre as fragilidades de Senna quanto à construção dos personagens, o pai e a mãe do piloto, vividos respectivamente por Marco Ricca e Susana Rineiro, são restritos aos papeis de aconselhadores e apoios incondicionais. Alain Prost (Matt Mella), o grande rival de Ayrton, é apenas o competidor de métodos questionáveis que oferece ao protagonista os desafios a serem superados. Já os chefões da Fórmula 1 são as personificações da ganância que deforma a paixão por conta do dinheiro envolvido, sendo também obstáculos para o herói performar nas pistas e, mais tarde, a fim de garantir que os pilotos tenham melhores condições de trabalho. A minissérie cerca um homem gradativamente santificado de arquétipos por todos os lados, o que seria mais aceitável se, por exemplo, o foco fosse a carreira automobilística e não a ideia de Ayrton como símbolo. E nem era preciso todo aquele sentimentalismo de mostrar sempre um menino periférico se ligando na telinha para conferir as proezas do compatriota privilegiado. Até porque o lugar de Ayrton Senna como ídolo brasileiro é inquestionável. No entanto, talvez querendo cooptar a atenção e o coração de uma nova geração, os idealizadores da minissérie preferem santificar Ayrton do que mostrar um homem multifacetado atingindo o topo do mundo. Sinal dos tempos em que a simplificação está na ordem do dia ou da influência da família nos roteiros?

A minissérie contou com a “autorização da família”, ou seja, passou pelo filtro (e crivo) daquilo que os herdeiros querem eternizar sobre o protagonista. Tanto que a participação de Adriane Galisteu (Julia Foti) é restrita ao mínimo possível – é público e notório que os Senna não aprovavam o relacionamento da modelo com Ayrton. Por fim, a jornalista Laura (Kaya Scodelario) é personagem absolutamente descartável, atuando somente como a personificação de uma imprensa carniceira e sensacionalista (o clichê), também conveniente como dispositivo para questionar personagens, assim dando a eles a oportunidade de expor coisas que poderiam ser mais interessantes se fossem menos explicadas. Então, especialmente aos saudosistas e amantes do esporte, Senna é um convite à nostalgia, sobretudo porque reconstrói de maneira emocionante momentos icônicos, como a vitória heroica de Ayrton no GP do Brasil de 1991 utilizando apenas uma marcha – um dos feitos mais impressionantes da história da Fórmula 1. Na pista, os apelos emocionais são inteligentes e funcionam, o mesmo não podendo ser dito dos convites sentimentalistas com crianças torcendo em câmera lenta e o povo sofrido encontrando num corredor o seu maior ídolo. Então, o saldo é ligeiramente positivo porque na pista a minissérie se garante e ainda tem o desempenho notável de Gabriel Leone – num papel que deve lhe abrir mais portas internacionais. Se dependesse de todo o resto, a nota seria negativa.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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