Crítica


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Sinopse

A história do grupo conhecido como The Mangrove Nine, manifestantes que entraram em confronto com a polícia londrina em 1970. O julgamento subsequente foi um dos indícios do ódio racial fomentado na sociedade local.

Crítica

Steve Mc Queen, o cineasta – não confundir com o astro homônimo, falecido em 1980 – ganhou o Oscar de Melhor Filme por 12 Anos de Escravidão (2013), mas perdeu o de Direção para o mexicano Alfonso Cuarón, que concorria por Gravidade (2013). Apesar de ter dirigido mais de duas dezenas de curtas-metragens, esse era apenas o seu terceiro longa-metragem – e chegar de forma rápida a um posto tão alto pode gerar consequências. Ainda mais que o título seguinte, o policial As Viúvas (2018), obteve uma recepção mista, entre (alguns) elogios e outras tantas críticas mais incisivas. Esse painel serve para especular quais teriam sido as possíveis motivações que levaram o cineasta a desenvolver o ambicioso projeto Small Axe, uma série de televisão composta não por episódios – mas, sim, por longas-metragens! Ao todo, são cinco filmes completos, unidos por um mesmo tema: episódios verídicos de violência e desrespeito contra a comunidade negra, na Londres dos anos 1970. E o começo já é de forte impacto: Mangrove (ou Os Nove de Mangrove, na tradução brasileira) é cinema em grande estilo, e caso tivesse sido lançado como tal, certamente estaria entre os melhores da temporada. Merecidamente.

O maior dos cinco segmentos, com mais de duas horas de duração, Mangrove parte de um capítulo que marcou a crônica policial e jurídica da capital inglesa na segunda metade do último século. Este era o nome de um restaurante aberto por Frank Crichlow (Shaun Parkes, de Perdidos no Espaço, 2018-2019). Com antecedentes criminais devido ao seu antigo negócio, o bar Rio, que costumava ser frequentado por traficantes e prostitutas, o empreendedor decidiu encerrar as atividades que tanta incomodação lhe deram e partir para um novo empreendimento, segundo ele, um “ambiente familiar”, livre de qualquer complicação. O que não imaginava era que, por maior que fosse sua vontade de mudar, o mais persistente dos seus incômodos seguiria no seu encalço. E não são os antigos clientes – que são expulsos sem meias palavras da entrada do comércio logo no início da trama. A ameaça vem justamente daqueles que deveriam promover a paz e a ordem: no caso, a opressão exercida pelo oficial Pulley (Sam Spruell, de Legítimo Rei, 2018).

Este, responsável pela região de Notting Hill – um lugar que, em 1970, era bem diferente dos românticos cenários vistos na comédia romântica estrelada por Julia Roberts e Hugh Grant em 1999 – não está interessado em apenas averiguar o que Crichlow está fazendo de novo. Pelo contrário: como já tem ideia definida a respeito do antigo desafeto, está disposto a exercer a força – e as agressões e barbaridades que achar apropriado – para eliminar de sua vista qualquer resquício daquilo que acredita gerar somente contravenções e ilegalidades, baseando sua avaliação apenas em pré-conceitos e, acima de tudo, na cor da pele daqueles que costumam ir a tal lugar. Não lhe importa a velha senhora responsável pela cozinha, as crianças brincando na porta ou as famílias que lotam o espaço no horário das refeições: para o policial e seus asseclas, tudo é motivo para batidas violentas, invasões a qualquer horário, apreensões sem justificativa e questionamentos sem o menor fundamento.

Pois bem, o nível de tensão entre os dois lados irá num crescente até que o óbvio irá se impor – e muito motivado pela presença de dois dos principais clientes do Mangrove: Darcus (Malachi Kirby, de Black Mirror T03 E05, 2016), um emigrante de Trinidad habituado a fazer valer sua voz – afinal, veio de um país cujos negros eram maioria, ao contrário de onde se encontra agora – e Altheia (Letitia Wright, de Pantera Negra, 2018), uma ativista inspirada pelo movimento dos Panteras Negra nos EUA. Ambos estão cansados de seguirem baixando a cabeça diante do abuso do homem branco. Por isso, organizam um protesto, uma passeata que deveria ser pacífica, mas acaba em tumulto após a intervenção policial. Como resultado, nove dos envolvidos se veem levados formalmente à Justiça, e o caso acaba na mais alta corte da nação. É quando entra em cena o juiz Edward Clarke (Alex Jennings, de A Senhora da Van, 2015), um magistrado que deveria coordenar o julgamento de forma imparcial, mas não vê no ocorrido um relato motivado pelo racismo, mas, sim, um mero distúrbio social. Porém, há também um júri envolvido, e por mais que a situação seja contrária às expectativas dos acusados, a esperança de que tudo consiga, enfim, ser colocado às claras permanece.

Com atuações impressionantes de Wright – a cena em que fala sobre o filho que carrega no ventre é de levar qualquer um às lágrimas – e Kirby – que faz um discurso final de arrepiar – Mangrove tem também o mérito de oferecer espaço suficiente para o destaque de Spruell, nunca menos do que perfeito como o homem que só quer ser deixado em paz, mas é levado até às últimas consequências por ação daqueles que o querem eliminado. Esse embate constante é potencializado pela câmera precisa de Mc Queen e do diretor de fotografia Shabier Kirchner (Bull, 2019), que parece ansiar por romper a barreira da pele e invadir os sentimentos e aflições desses homens e mulheres impedidos de sequer sobreviver por causa de suas aparências, como se nada mais fossem e ninguém se importasse com o que carregam em si. O resultado é sufocante, mas absolutamente necessário. Mangrove é um registro fundamental de um evento que não pode ser esquecido, além de também funcionar como entretenimento – as sequências no tribunal são dinâmicas e envolventes. Com tudo isso, se encaixa com precisão como porta de entrada ao triste – porém de urgente relato – universo de Small Axe.

 

 

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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