Crítica
Leitores
Sinopse
A Força Espacial é uma divisão das Forças Armadas dos Estados Unidos. O cotidiano do grupamento é feito de “defender os satélites de ataques”, “executar tarefas relacionadas ao espaço”, entre outras coisas obscuras.
Crítica
O ponto de partida desta série é brilhante: quando Donald Trump revelou seus planos de “colonizar o espaço”, empregando soldados americanos na missão de uma “Força Espacial”, foi ridicularizado no mundo inteiro pela megalomania e pelo senso equivocado de prioridades. Greg Daniels e Steve Carell, parceiros de The Office (2005 - 2013), aproveitaram rapidamente a deixa para desenvolver um projeto hipotético: o que aconteceria se o governo americano de fato destinasse bilhões de dólares à criação de um serviço encarregado de levar armas, astronautas e travar guerras pelo espaço? O lema “Coturnos na Lua em 2024” simboliza muito bem o ímpeto guerreiro e egocêntrico do presidente norte-americano. Space Force nasce da vontade de ao mesmo tempo criticar a política real e parodiar o que este novo setor do exército poderia ser: um inútil serviço destinado a glorificar o patriotismo do presidente-magnata. A narrativa nasce com os dois pés fincados na crônica política e na contemporaneidade: há brincadeiras com a obsessão do presidente pela comunicação via Twitter, com o Brexit, a ONU, a Força Aérea, além de recriações divertidas de Nancy Pelosi e Alexandra Ocasio-Cortez.
Apesar de tamanho potencial, o projeto sofre com o receio de se tornar partidário ou corrosivo demais. O presidente jamais aparece, Trump nunca é mencionado, e os gastos exorbitantes com a Força Espacial são escancarados, mas depois desculpados. Os criadores desta comédia hesitam entre atacar a velha política e efetuar uma leitura condescendente da mesma, sugerindo que há problemas em todos os lugares, que as pessoas estão tentando o melhor que podem, e que os Estados Unidos acabarão prevalecendo na nova Guerra Fria rumo à conquista espacial. Adota-se uma postura política de meias vontades, do tipo que ridiculariza tanto Republicanos quanto Democratas (o que é positivo), mas não deixa de afagar as decisões insanas do protagonista, o general Naird (Carell). Outras séries políticas demonstravam coragem de ridicularizar profundamente a política enquanto escancaravam o mecanismo viciado da estrutura bipartidária. The Newsroom (2012 - 2014) e Veep (2012 - 2019) são alguns exemplos onde o humor, ou pelo menos a ironia, serviram para comentar os delírios da hegemonia norte-americana. Ora, a nova comédia da Netflix visa agradar a todos, provocar sorrisos sem desagradar quem quer que seja.
Por consequência, Mark Naird torna-se um protagonista opaco, de traços mal delimitados. No piloto da série, ele representa a única voz sã entre um grupo de malucos despreparados. Essa seria uma excelente inversão em relação a The Office, onde Carell interpretava o maluco entre os sãos. No entanto, nos episódios seguintes (vide os segmentos envolvendo o macaco Marcus e o exoesqueleto), o general se converte no tipo imprudente e infantil, cercado por cientistas detentores da razão. Quando alega que “precisamos aprender com os erros do passado”, evitando guerras e combatendo a “arrogância” norte-americana, volta a assumir o posto de voz da prudência. No entanto, dentro de uma cápsula lunar, provocando os colegas, remete novamente ao patético e solitário Michael Scott. O roteiro nunca define o papel cômico deste personagem, o que cria um problema de tom para a série, e para os demais papéis: o contido doutor Adrian Mallory (John Malkovich) sempre responde em nome dos fatos e dos estudos científicos, porém rumo ao final, quando Scott defende posturas razoáveis, o cientista passa a sugerir o uso bombas para fornecer algum contraste ao protagonista.
No caso de The Office, eram muitos claros os traços de personalidade de cada um, além da função naquele espaço e o tipo de humor que produziriam. Em Space Force, a dispersão resulta em figuras inconsistentes: a militar Angela Ali (Tawny Newsome) soa seríssima, até começar a falar em gírias, de maneira debochada, pouco tempo depois. O doutor Chan Kaifang (Jimmy O. Yang) faz questão de intervir o mínimo possível, até aceitar a participação em um improvável presente de aniversário ao presidente. A inconsistência afeta inclusive a articulação dos núcleos: por se passar quase inteiramente dentro do quartel-general da Força Espacial (um lugar ao mesmo tempo escondidíssimo, como se demonstra no piloto, e acessível a todos, como se mostra mais tarde), o texto não consegue dar atenção suficiente à esposa (Lisa Kudrow), à filha (Diana Silvers) nem ao pai (Fred Willard) de Mark Naird. A filha Erin fica reservada durante longos episódios a um quiosque de açaí, sem função narrativa específica relacionada às tarefas do trabalho espacial. O protagonista cuida ou do trabalho, ou da filha, sem que os conflitos se comuniquem (os namoricos da garota pelos pátios do prédio são insuficientes para despertar qualquer atrito duradouro).
Séries cômicas de viés crítico, como Seinfeld (1989 -1998), Arrested Development (2003 - ) e o próprio The Office se saíam bem na tarefa de articular múltiplos aspectos na vida dos personagens: os problemas em casa afetavam o trabalho, que por sua vez provocava desgaste nas amizades e assim por diante. Ora, o novo projeto da Netflix apresenta notável dificuldade em conjugar seus diferentes núcleos dentro de uma história coesa. Isso também decorre do fato que os personagens jamais possuem um objetivo preciso: se a intenção é colocar “coturnos na Lua em 2024”, não se desenvolve uma preparação realmente ligada à tarefa. Cada episódio apresenta uma esquete autônoma: Naird e sua equipe precisam consertar um satélite quebrado, testar duas marcas diferentes de exoesqueleto numa guerra-teste, entender o funcionamento na Lua dentro de um setor simulado, preparar tuítes e discutir modelos de uniformes espaciais. Pelo excesso de simulações sem discussão prévia nem consequência na história, estes trechos se transformam em brincadeiras inconsequentes, até a trama decidir abruptamente lançar seu foguete, com personagens que mal conhecemos a bordo. Haveria diversas maneiras possíveis de parodiar a real preparação de um astronauta, ou o desconhecimento dos líderes em relação à ciência, mas a comédia perde tempo demais fugindo deste tema e abraçando qualquer tangente possível – mesmo as más aproveitadas ideias de um combustível falso e da facilidade ao se nomear uma estrela.
O espectador pode se questionar sobre o que os personagens estão fazendo lá dentro, que objetivo realmente possuem neste espaço tão desprotegido quanto a sala de Naird. A eventual pressão do presidente, a repercussão do trabalho com a população ou as falhas de lançamento poderiam trazer efeitos interessantes à trama, mas nada disso se concretiza: a figura megalomaníaca que motivou a série está oculta, a sociedade não repercute as ações da Força Espacial, a mídia aparece pouco, as pequenas pressões de parlamentares não surtem efeito, os gastos equivocados do orçamento não geram cobranças. Sem qualquer forma de pressão, o trabalho dos personagens se transforma num palco de jogos envolvendo com armas falsas, Luas artificiais e balões colados ao corpo. Em The Office, o fato de o pequeno escritório de papéis não produzir nenhum produto de fato era motivo de piada, porque havia um contraponto: Michael Scott era constantemente confrontado aos resultados das demais filiais. Aqui, Naird faz o que quiser, e quando efetua um erro grave, escuta ao telefone: “Você está se cobrando demais. Vai dormir e falamos amanhã”. O tom progressivamente dramático dos três últimos episódios reforça a condescendência da direção com os personagens e suas ações. Pelo posicionamento próximo a pessoas reais, recua-se no teor incisivo e passa-se a mão na cabeça de todos.
Isso não significa que a trama seja desprovida de bons momentos. Mesmo controlando um personagem menos interessante, Steve Carell ainda possui uma quantidade impressionante de recursos cômicos, que equilibram o estilo ex-ces-si-va-men-te ar-ti-cu-la-do de John Malkovich. Lisa Kudrow, Tawny Newsome e Jimmy O. Chang são ótimos, por não sublinharem as piadas do texto, interpretando seriamente cenas absurdas. Apenas Diana Silvers, atriz de 23 anos de idade, soa deslocada enquanto adolescente cuja rebeldia jamais se justifica. Talvez se houvesse cenas da garota na escola, ou se o texto desenvolvesse a relação com a mãe, o comportamento dela soasse mais plausível. Nem mesmo os motivos da prisão da mãe são trabalhados ao longo da primeira temporada. Space Force possui atores de primeira categoria, amparando-se numa premissa ideal para os tempos pós-modernos. No entanto, privilegia atalhos para fugir ao cerne político dos temas. De certo modo, os elementos necessários a uma boa série cômica estão presentes, ainda que diluídos em doses homeopáticas: o ritmo é um tanto lento, as piadas demoram a se construir e chegar a uma punchline, e a falta de objetivo dos personagens não é suficientemente parodiada ao ponto de se tornar autocrítica. Space Force precisaria efetuar sérias mudanças de tom para melhorar o resultado da provável segunda temporada.
Últimos artigos deBruno Carmelo (Ver Tudo)
- O Dia da Posse - 31 de outubro de 2024
- Trabalhadoras - 15 de agosto de 2024
- Filho de Boi - 1 de agosto de 2024
Grade crítica
Crítico | Nota |
---|---|
Bruno Carmelo | 5 |
Lucas Salgado | 6 |
Leonardo Ribeiro | 6 |
MÉDIA | 5.7 |