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Sinopse

Técnico nos Estados Unidos e sem experiência alguma no futebol inglês, Ted Lasso é contratado para treinar um time na Inglaterra. Apesar da série de dificuldades que terá pela frente, seu inesgotável otimismo irá lhe ajudar a conquistar seus objetivos.  

Crítica

Ted Lasso é a solução dos seus problemas... mesmo que você não tenha nenhum – ou nem saiba que os tem! Criado para uma peça publicitária para um programa de esportes da rede NBC, o técnico de futebol imaginado – e interpretado – por Jason Sudeikis é uma figura fora da maioria dos padrões. Não pela aparência ou maneira de se portar, mas pelo que faz e, acima de tudo, acredita. Para começar, trata-se de alguém que vive do futebol nos Estados Unidos – e não se está falando aqui do football norte-americano, mas, sim, do soccer, ou seja, do esporte bretão que tão bem conhecemos no Brasil. Apesar disso – e da natureza competitiva dessa atividade – é esforçado (e comprometido) em sempre olhar o lado positivo das coisas. Não entende a natureza de um empate e acha que perder pode ser tão bom quanto ganhar. É por ele, mais do que as supostas engenharias da trama, que a primeira temporada da série Ted Lasso acaba valendo o investimento de percorrer seus dez episódios.

Antes de prosseguir, é uma correção se faz necessária: Ted Lasso não é técnico de futebol. Ele se torna um no primeiro episódio. Até então, atuava no nível universitário de futebol americano nos Estados Unidos. Porém, afeito a desafios e certo de que vale mais a jornada do que o destino, aceita o convite para treinar uma equipe da primeira divisão inglesa, em Londres. Desacreditado por todos – dos jogadores à imprensa, passando, obviamente, pelos torcedores mais fanáticos – chega ao novo trabalho ostentando um bigode chamativo e um sorriso ainda mais catalizador de atenções, convencido de ter feito a coisa certa. Só há uma pessoa apostando nele – e não, necessariamente, no sucesso da empreitada. Rebecca Welton (Hannah Waddingham, de Sex Education, 2019-2020) é a dona do grupo esportivo e a responsável pelo convite que o levou até a Inglaterra. É ela, mais até do que o próprio, que o quer nesse posto. Pois tem certeza que somente com alguém como Ted Lasso conseguirá alcançar o seu feito: acabar com o time.

Como se vê, o argumento é simples. Welton é uma milionária que foi humilhada publicamente pelo ex-marido, que a trocou por uma garota mais nova. Na divisão dos bens, o ASC Richmond, que ambos eram proprietários e objeto de torcida alucinada por parte dele, acaba ficando com ela. Para se vingar, portanto, tem apenas um plano: destruir aquilo que o homem que tanto lhe machucara mais gostava. Por isso, sua primeira medida no comando da empresa foi substituir o antigo treinador e chamar a pessoa mais inexperiente possível para o lugar: Ted Lasso. Esse, no entanto, está tão habituado a ver “o copo meio cheio” que nem passa pela sua cabeça a possibilidade de estar sendo feito de chacota – e até mesmo boicotado – de dentro do trabalho, alheio a fatores externos. Como inúmeras tramas similares, não precisa ser nenhum gênio para imaginar o que irá acontecer a seguir: Lasso, a despeito de todas as probabilidades, irá mostrar seu valor, ao mesmo tempo em que conquistará também o apreço da nova patroa, que passará a rever suas prioridades.

Ou seja, se o quadro maior de Ted Lasso é previsível – e, em certa parte, até mesmo decepcionante, pois foge pouco da cartilha pré-estabelecida (até o desfecho, um tanto anticlimático, é propício para as futuras continuações) – o seriado acaba somando pontos por alguns dos seus mais fortes elementos. Para começar, tem-se a atuação vigorosa de Sudeikis, que mesmo diante de um protagonista que tinha tudo para ser irritante e de difícil relacionamento, consegue fazer dele uma figura humana e próxima dos demais, tanto na ficção, quanto no lado de cá da telinha. Ele não tem pressa – e este é o maior dos seus méritos. Aos poucos, e com paciência, vai conquistando não apenas a audiência, que começa a perceber nele uma construção além da superfície, mas também os que dele dependem. Veja bem, Lasso está numa posição intermediária nesse jogo de poder: por um lado, precisa convencer os jogadores – entre eles, verdadeiros craques que estranham de imediato as ideias do recém-chegado – de que sabe o que está fazendo (mesmo que às vezes não tenha a menor ideia), enquanto que acima se vê tendo que lidar com uma chefe que se esforça para se manter distante, mas que, aos poucos, vai com ele estabelecendo conexões.

Se o ganha e perde faz parte do pacote, felizmente há mais no programa criado por Sudeikis em parceria com Bill Lawrence (Scrubs, 2001-2010), Brendan Hunt (que, à frente das câmeras, aparece como o técnico auxiliar conhecido por Coach Beard) e Joe Kelly (Saturday Night Live, 2013). Importante destacar: além daquele que dá título ao show e seu melhor amigo, outro importante personagem, o jogador veterano Roy Kent, também é interpretado por alguém encarregado do texto e dos diálogos – no caso, o ator e roteirista Brett Goldstein (Soulmates, 2020). Ou seja, com tamanha afinidade entre a sala de roteiro e o elenco, tal entrosamento só poderia também transparecer em cena. O que acontece, inclusive no lado feminino, seja na imponência – e fragilidade, vez por outra revelada, mas escondida na maior parte do tempo – de Waddingham. Ela ganha reforço pela presença hipnotizante de Juno Temple, que faz da loira-nada-burra Keeley Jones (“sou uma celebridade por quase ter sido uma celebridade”) um dos tipos mais divertidos e interessantes de todo o conjunto. Ou mesmo as participações pontuais de Andrea Anders (Young Sheldon, 2018-2020), como a esposa Michelle Lasso, ou Flo (Ellie Taylor, de Plebs, 2018-2019), a melhor amiga de Rebecca, ambas cativantes na medida certa.

Muito já foi dito e repetido que o futebol não é um esporte afeito à dramaticidade da ficção – certamente, não como o boxe ou o atletismo, por exemplo. Tanto brasileiros (os maiores do mundo nessa aptidão, ao menos pelo ranking da Fifa) quanto ingleses (inventores da prática), dessa vez comeram a poeira deixada por uma produção majoritariamente hollywoodiana (ainda que filmada quase que inteiramente em Londres). Ted Lasso poderia ser mais sobre o que se passa no campo, mas talvez, se assim fosse, acabaria por demais restrito aos amantes da atividade. Ao ampliar seu universo de ação, não deixa de explorar os dramas corriqueiros – o medo do rebaixamento, o craque que se porta como uma diva etc – enquanto agrega outros conflitos, de maior alcance e capacidade de identificação. E por fim, tem-se uma criatura única, daquelas que merecem ser estudadas, que mesmo com tudo contra, consegue organizar os elementos dispostos a ser favor. Pode parece estranho, mas é tudo que basta para dar gol.

 

 

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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