Crítica


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Sinopse

Técnico nos Estados Unidos e sem experiência alguma no futebol inglês, Ted Lasso é contratado para treinar um time na Inglaterra. Apesar da série de dificuldades que terá pela frente, seu inesgotável otimismo irá lhe ajudar a conquistar seus objetivos.  

Crítica

Ted Lasso é o tipo de personagem que define uma carreira. Jason Sudeikis fez várias coisas antes de interpretar esse técnico de futebol americano levado a se tornar a grande esperança de um pequeno clube inglês do nosso futebol (esporte que os EUA chamam de soccer). No entanto, provavelmente, ele será por muito tempo (ou para sempre) lembrado por esse homem que aparece na tela como um subversivo. Num mundo repleto de cinismo e negatividade confundida com realismo, Ted rema radicalmente contra a maré, pois é um poço de positividade que detém a capacidade enorme de compreender o seu interlocutor, mesmo ao discordar radicalmente dele. Dentro de uma lógica esportiva afetada por números proibitivos e entendimentos corporativos, Ted é aquele que ainda prefere olhar nos olhos dos jogadores e encoraja-los com a lembrança de que todos são fundamentalmente humanos. Ganhando ou perdendo. Diante da confissão de seus antagonistas, ele simplesmente dá a outra face e assim os desarma. E essa personalidade cativante ganha um pano de fundo dramático na segunda temporada, quando descobrimos que, talvez, Ted tenha construído um muro contra a negatividade para tentar curar as feridas de algo muito grave que lhe aconteceu na adolescência. E os criadores não incorrem num psicologismo raso, a isso preferindo mostrar que as emoções tendem a romper as represas.

Com o rebaixamento do AFC Richmond na primeira temporada, o desafio de Ted Lasso (Sudeikis) e da dupla de técnicos auxiliares (depois transformada em trio) é lutar contra as adversidades e, quem sabe, levar o time de volta à tão cobiçada Premier League. Como tinha sido antes, as cenas de futebol importam estritamente como circunstâncias em que determinadas emoções e situações afloram. Pouco importa a dinâmica do jogo em si, os esquemas táticos ou mesmo o quanto o técnico Lasso passa a compreender as regras. As quatro linhas formam um perímetro em que culminam os desafios a serem encarados pelos técnicos à beira do gramado, pelos personagens que ficam na tribuna de honra e até pelos torcedores que acompanham cada lance na televisão do pub favorito dos fãs. E há dois grandes temas no segundo ano de Ted Lasso: a morte e a paternidade. A inevitável se apresenta no primeiro episódio, quando um acidente improvável depois da cobrança de um pênalti vitima fatalmente o cão-mascote do time e coloca o entusiasmado Dani Rojas (Cristo Fernández) num estado de falta de confiança. E isso abre caminho para a entrada da psicóloga Sharon (Sarah Niles), figura fundamental para a discussão da saúde mental durante os ótimos (e mais longos) 12 episódios. Justamente o jogador cujo bordão é “futebol é vida” precisa compreender que a morte faz parte da jornada para ressurgir.

A morte também está em outros momentos, como no passado revelado a duras penas por um Ted Lasso descrente na psicanálise e na perda que serve para alguém reatar os laços com sua mãe ainda viva. A morte é tratada como ameaça constante no brilhante episódio em que Beard (Brendan Hunt) vaga pela cidade tendo aventuras na madrugada – obviamente inspirado em Depois de Horas (1985), de Martin Scorsese, tanto que o episódio se chama Beard Depois de Horas. A morte aparece camuflada de obsolescência, adquirindo a forma do medo de não haver algo além da carreira acabada (um fim). Roy Kent (Brett Goldstein) é o personagem que não sabe muito bem o que fazer com o tempo livre depois da aposentadoria dos gramados. Ele e Keeley (Juno Temple) continuam formando uma dupla e tanto, o casal apaixonado que tem suas turbulências normais administradas à medida que aparecem. Na sua segunda temporada, Ted Lasso segue exibindo uma mistura cativante e equilibrada de humor e drama, nos levando ao riso constantemente por conta das tiradas, mas também nos convocando às lágrimas com frequência. Os personagens adoráveis (e ou detestáveis) nos conferem acesso ao íntimo de sua humanidade, num procedimento que se assemelha a gostar ainda mais de um amigo que deixa as máscaras para trás e se revela por completo, claro, não sem hesitar diante da sua fragilidade.

O outro grande tema da segunda temporada é a paternidade. Quase todos os personagens principais são atravessados por isso, seja de modo literal ou metafórico. Ted administra o fato de ser pai à distância ao remoer as suas questões pendentes como filho. E essa mistura engatilha as crises de pânico. Nate (Nick Mohammed) se torna ambicioso e faz de tudo para agradar seu genitor aparentemente incapaz de oferecer palavras de carinho e reconhecimento. James Tartt (Kieran O'Brien), coadjuvante que infelizmente perde um pouco de importância, precisa enfrentar o pai agressivo para viver melhor consigo mesmo e aplacar a própria fúria. Sam (Toheeb Jimoh), coadjuvante que felizmente ganha importância, tem a benção da referência paterna à distância, sempre disposta a incentiva-lo. Rebecca (Hannah Waddingham) expurga os demônios evocados pelo pai diante da mãe que anseia por retomar as conexões afetivas. Higgins (Jeremy Swift) é um protótipo de pai ideal, pois essencialmente amoroso com sua prole. E Roy desempenha uma função de pai simbólico da sobrinha adorável com quem interage em boa parte dos episódios. Aliás, a menina oferece ao ex-jogador rabugento um contraponto excelente que gera contrastes peculiares, como ver o homem de cenho franzido em situações pouco associadas à sua personalidade irascível. Esse painel humano é desenhado com muita precisão.

Uma das coisas mais interessantes de Ted Lasso é justamente a capacidade de trazer aspectos da realidade crua para uma moldura que flerta com o idealismo dos contos de fadas. Ninguém imagina que efetivamente um sujeito como Ted Lasso prosperaria tanto no meio do futebol. Afinal de contas, num esporte em que o resultado está atrelado a montanhas de dinheiro, ganhar ou perder é determinante. Bem por isso Ted surge como o líder da resistência, alguém com uma capacidade quase inabalável de ser positivo e que, felizmente, está cercado de pessoas que respaldam a sua conduta. As interações com Beard continuam hilárias (às vezes não é preciso mais que uma troca de olhares entre os cúmplices) e são acrescidas da exposição de pequenas divergências, uma vez que o auxiliar demonstra insatisfação com o discurso do amigo que não valoriza a vitória e tampouco desvaloriza a derrota. Esse dado de realidade, por assim dizer, também surge na discussão sobre saúde mental, vide a melhora ocasionada pela presença da psicóloga esportiva. Não à toa, o AFC Richmond apenas cresce na segunda divisão depois que seus jogadores se deitam no divã. Também não à toa, o clube somente pode triunfar quando o técnico Lasso enfrentar os fantasmas que lhe causavam pânico. É interessante que numa série cômica a mensagem final da temporada seja: é mais fácil viver com os olhos abertos (claro, depois da crise ao abri-los), assim contrariando a música dos Beatles que afirma o contrário.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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