Crítica


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Sinopse

Eleanor Shellstrop está morta. Acontece que, após sua partida, ela foi enviada ao "Good Place - ou "Bom Lugar" -, um lugar de eterna felicidade destinado às pessoas que fizeram o bem durante suas vidas. Lá, todos são bons e encontram as suas almas gêmeas, com quem passarão o resto da eternidade. Mas tudo isso não passa de um acidente: Eleanor não merece estar lá. E agora, será que ela vai conseguir esconder a verdade de Michael, que coordena a vizinhança, ou será eventualmente enviada ao "Bad Place"?

Crítica

A concepção religiosa em geral (católica, especialmente) determina que pessoas boas vão para o céu e pecadores maldosos, para o inferno. Agora, imagine se realmente existe esta separação no pós-vida? Na hora de você despertar do outro lado, toda a sua trajetória é calculada. A predominância é de atos ruins. Mesmo assim, você vai parar, ainda que por engano, onde os bonzinhos estão. Esta é a premissa de The Good Place, série de Michael Shur, co-criador de sucessos como a versão americana de The Office (2005-2013) e Parks and Recreation (2009-2015), uma das sacadas mais acertadas da televisão norte-americana na última década. Pois este produto que chega agora para o público brasileiro é mais um exemplo de como ideias simples conseguem se tornar geniais com um roteiro e produção criativos.

Na primeira temporada, o Bom Lugar do título original dá boas-vindas à Eleanor Shellstrop (Kristen Bell), uma advogada dedicada às causas humanitárias e que fazia greve de fome em protestos pacíficos. Só que, apesar do mesmo nome, esta Fake Eleanor foi parar lá por engano. Esta é grosseira, oportunista, pouco se lixava para quem estava ao redor e ainda trabalhava como vendedora de telemarketing numa empresa que comercializava placebo para idosos com garantia de cura para diversas doenças. E a própria não tinha vergonha nenhuma disso. Eleanor, ainda por cima, tem uma alma gêmea para viver o resto dos seus dias, como todos por lá. No seu caso, é Chidi Anagonye (William Jackson Harper), um filósofo enrolado e indeciso, a quem a protagonista pede ajuda com aulas para se tornar uma pessoa melhor. Não que a ideia vá dar tão certo, apesar da mudança gradual que a personagem vai passando ao longo dos capítulos.

O arquiteto coordenador da “vizinhança” (são várias no Bom Lugar), Michael (Ted Danson), logo começa a notar alterações na região sem entender o que acontece de errado. São camarões voadores, um buraco no meio da cidade, um cachorro perdido. Há algo de podre por ali e ele sequer desconfia que seja Eleanor. O roteiro é hábil ao explorar esta inocência do criador, como se ele fosse um Deus ingênuo e benevolente que acredita ter fracassado em seu experimento, já que outras vizinhanças não sofrem do mesmo problema que a dele. As situações vão se complicando ainda mais com outros personagens em cena que podem ou não ter algo a ver com tudo que ocorre, como Jianyu Li (Manny Jacinto), um monge budista que fez voto de silêncio mesmo na morte, e Tahani Al-Jamil (Jameela Jamil), uma socialite amiga de celebridades (é sempre um show de risadas suas referências a personalidades como Beyoncé, Ryan Gosling e as diferentes Kardashians) que sempre organizou jantares beneficentes.

São 13 episódios em que todo tipo de confusão aparece. Fatos que se acentuam mais ainda com os respectivos flashbacks de personagens quando eles ainda estavam vivos. Quando tudo parece partir pro besteirol sem sentido, logo o roteiro dá uma guinada para ligar as pontas. O que torna a série viciante é a pegada de Michael Shur em não entediar o espectador ou fazer com que o mesmo se sinta enrolado. Há um desenvolvimento claro no arco narrativo, ainda mais com a introdução de novos elementos, outros personagens, a Eleanor original e, claro, o Lugar Ruim (ainda que o mais divertido de todos seja o Lugar Nenhum). Um dos pontos mais divertidos é que palavrões são proibidos de serem ditos pelos moradores. Logo, são criados novos jargões, com a inversão de termos conhecidos, como “shit” para “shirt”, e por aí vai.

Se muito do sucesso da série é de seu produtor, ele não poderia ter escalado um elenco melhor. Todos estão acima da média (ainda que Manny Jacinto passe do ponto algumas vezes após a revelação de seu personagem), mas Bell e Danson comandam o espetáculo. O timing cômico da atriz já é conhecido de longa data, inclusive de algumas comédias românticas para o cinema, mas aqui ela dá seu melhor para não tornar a personagem unidimensional, fazendo uma Eleanor que torcemos e queremos que se dê mal ao mesmo tempo. Já Danson, tão acostumado a papeis sérios nos últimos anos, como os vistos em Damages (2007-2012), CSI (2011-2015) e Fargo (2015), acaba lembrando sua performance cômica em Cheers (1982-1993). Porém, quem rouba a cena sempre é Janet (D’Arcy Carden), uma espécie de secretária/Google/Siri que não tem emoção nenhuma e sempre responde aos chamados apenas pela pronúncia de seu nome. Ela sabe de tudo o que acontece, do passado dos moradores do Bom Lugar e até o que cada um trama, mas, como um ser despreocupado com sentimentos e afins, a ela não faz diferença o que há de errado no sistema. A não ser, claro, quando a própria é atingida.

Com um belo plot twist no fim da primeira temporada, The Good Place é daquelas séries que parecem sempre tirar uma cartada nova a cada episódio, garantindo o interesse por mais situações malucas e que, pasmem, fazem sentido. Acima disso, faz uma análise filosófica sobre quem merece estar ou não no paraíso. Afinal, as pessoas são más por natureza, podem ter sido frutos de traumas passados ou podem mudar? Com referências diretas a pensadores da Grécia Antiga até mais contemporâneos, de Sócrates a Nietzsche, passando até por Michel Foucault, acaba escondendo uma profundidade muito maior do que o verniz de comédia surtada apresentada. A segunda temporada já está sendo exibida, com um episódio novo por semana, na Netflix. E se a espera acaba sendo motivo de oração, vai ser mais impossível ainda terminar uma maratona de episódios sem repetir vários “what a fork?” logo após a sessão.

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é crítico de cinema, apresentador do Espaço Público Cinema exibido nas TVAL-RS e TVE e membro da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul. Jornalista e especialista em Cinema Expandido pela PUCRS.
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