Crítica


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Sinopse

Depois que um atentado terrorista ceifa a vida do presidente dos Estados Unidos e de grande parte dos outros políticos eleitos, uma facção católica toma o poder com o intuito declarado de restaurar a paz. O grupo transforma o país na República de Gilead, instaurando um regime totalitário baseado nas leis do antigo testamento, retirando os direitos das minorias e das mulheres em especial. Em meio a isso tudo, Offred é uma "handmaid", ou seja, uma mulher cujo único fim é procriar para manter os níveis demográficos da população. Na sua terceira atribuição, ela é entregue ao Comandante, um oficial de alto escalão do regime, e a relação sai dos rumos planejados pelo sistema.

Crítica

Foram oito prêmios Emmy em 2017 e dois Globos de Ouro no início de 2018, isso sem contar outros “trocentos” troféus que The Handmaid's Tale levou para casa. Era de se esperar, portanto, que o sucesso de público e crítica fizesse com que uma segunda temporada fosse encomendada logo. A primeira etapa adaptou de forma integral o romance homônimo da escritora Margaret Atwood. Já a sequência é baseada num texto totalmente original, livre de amarras. Ainda há muito a ser contado sobre June, Emily, Serena, Tia Lydia e todas as mulheres que vivem na República de Gilead. Mas será que essa liberdade narrativa ajudou a série a crescer ou acabou por colocar algumas barreiras na história?

Começamos do ponto em que a primeira temporada parou: a possível escapada de June/Offred (Elisabeth Moss) dos temíveis abusos sofridos na casa onde mora. Na verdade, tudo não passa de um engodo para que Tia Lydia (Ann Dowd) puna as aias por não atirarem pedras em Janine (Madeline Brewer) após seu surto completamente compreensível por conta do bebê gerado. As garotas passam por uma sessão de horror, em que um enforcamento coletivo é montado. Ou seja, nada de novo no front de crueldades cometidas em Gileard.

Fora da cidade, finalmente conhecemos as malditas Colônias, para onde as "traidoras" são enviadas. Um local sujo, árido, em que mulheres são expostas a doenças dos mais variados tipos, sem água potável ou condições humanas para alimentar-se e dormir. É lá que continua o desenvolvimento da vingança de Emily/Ofglen (Alexis Bledel), professora universitária, lésbica assumida, que chegou a matar alguns soldados de Gileard numa tentativa de fuga e revolta. Se a personagem apenas cresce de forma cruel, sua narrativa entra em paralelo com o passado. Conhecemos sua antiga rotina e vida pessoal em flashbacks. Neste ínterim, há espaço para uma bela surpresa: a participação especial de Marisa Tomei como uma esposa que traiu o marido por amor a outro homem.

De lados opostos, as duas principais figuras femininas da revolta vão se encontrar novamente, mas ainda demora bons episódios para isso acontecer. De volta à Gileard e à casa de Fred (Joseph Fiennes) e Serena (Yvonne Strahovski), June precisa continuar mantendo a fachada para arquitetar novos planos de fuga. Ao mesmo tempo, num misto de ódio, pena e até amizade por Serena, começa a despertar na mente da esposa de Fred todos os erros que vem sendo cometidos pelos homens da nação. Inclusive a ponto dela liderar um protesto sutil que acaba de forma perversa.

Também vemos muito do que acontece fora do EUA, especialmente no Canadá, onde estão os refugiados de Gileard, como o marido de June, Luke (O-T Fagbenle), e sua melhor amiga, Moira (Samira Wiley). À parte do desenvolvimento desta, o mais interessante é ver como funciona a política de estado das duas nações e como os canadenses estão revoltados. Não à toa, Fred é hostilizado de forma direta numa tentativa de reunião, enquanto Serena é abordada por um agente ao mesmo tempo em que recebe olhares descontentes de uma mãe e sua filha pequena na espera pelo elevador. Talvez uma das cenas mais impactantes de toda a temporada, por conta da simplicidade recheada de subtextos.

São muitos pontos a se considerar, mas o foco principal ainda é June, sua busca pela filha perdida e a gravidez que vai percorrer toda a temporada até culminar no nascimento da nova criança numa das mais belas sequências da televisão norte-americana dos últimos tempos. Porém, na medida em que a poética se faz presente, é justamente em torno de June que algumas falhas narrativas começam a aflorar. Se na primeira temporada havia uma tentativa (muito acertada) de tornar a personagem o mais próximo de qualquer mulher que porventura assista à série, nesta segunda se incute na mesma uma personalidade de Mulher-Maravilha, como se ela se sentisse responsável por ser a líder sobre-humana que vai chefiar todas contra o regime. As razões, motivos e consequências estão no lugar certo, mas algumas escolhas de June podem causar dúvida e até nariz torto, por desviarem do foco principal. Algo que se eleva no fim da temporada.

Com uma extensão no número de episódios (foram 10 na primeira temporada e 13 na segunda), percebe-se que a Hulu cai no mesmo erro da Netflix (e de praticamente todas as emissoras televisivas) ao tentar estender demais uma história de sucesso. Não que The Handmaid's Tale careça de qualidade, pelo contrário. Narrativa ou graficamente, a série continua superior à boa parte dos produtos lançados atualmente. Porém, é visível, em diversos momentos, que há tentativas de “enrolar” o espectador com cenas demais e discurso de menos. Algo que, se mantido o número de episódios da temporada anterior, talvez não se tornasse tão perceptível.

O grande trunfo nisso tudo é que personagens como Emily, Serena e Tia Lydia evoluem. Inclusive esta, com a grande atuação de Ann Dowd, começa a mostrar uma faceta bem mais humana do que aparenta, chegando a fazer com que o espectador sinta empatia pela própria personagem, muito além da performance monstra da atriz. Acima de tudo, Gileard se mostra cada vez mais claustrofóbica, angustiante e violenta, com paralelos ainda maiores com o mundo atual, onde o totalitarismo parece voltar a bater à porta numa chuva de preconceitos, machismo e homofobia. Muitas vezes, disfarçado pela "boa cristandade". Talvez por isso, mesmo que com algumas falhas, The Handmaid's Tale continua sendo tão importante como porta-voz do discurso de igualdade de gêneros. E não é qualquer resvalo que vai tirar da série a sua relevância.

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é crítico de cinema, apresentador do Espaço Público Cinema exibido nas TVAL-RS e TVE e membro da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul. Jornalista e especialista em Cinema Expandido pela PUCRS.
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