Crítica


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Sinopse

A saga de um guerreiro solitário, que também é um mercenário e pistoleiro, viajando pelos territórios esquecidos e marginais do espaço, logo após a queda do Império e antes da criação da temida Primeira Ordem.

Crítica

The Mandalorian se passa imediatamente após Star Wars: Episódio VI - O Retorno de Jedi (1983), ou seja, numa galáxia ainda sentindo os efeitos imediatos da queda do Império. O cenário, portanto, é propício ao modo de vida do Mandaloriano (Pedro Pascal), cujo nome verdadeiro é ocultado até o episódio derradeiro dessa primeira temporada. E faz bastante sentido ele ser tratado pela alcunha dos caçadores de recompensa mais afamados, aos quais faz parte, afinal de contas vive estritamente sob o código moral da doutrina conhecida. “Este é o caminho” se torna a sentença repetida inúmeras vezes como mantra, uma bússola para evitar quaisquer desvios do conjunto de regras que o ajudou, entre outras coisas, a sobreviver ao infortúnio da orfandade. O fato dos princípios orientarem o guerreiro justo aproxima o protagonista dos samurais. Mando é, então, equivalente a um ronin, vagante não subordinado, vivendo de trabalhos bem remunerados e perigosos.

Está na gênese da saga Star Wars essa relação com o chanbara, o tipo de narrativa japonesa que envolve batalhas, e, num sentido amplo, com o jidaigeki, o filme histórico que acaba centralizando a figura dos samurais. O próprio George Lucas citou em inúmeras entrevistas que os Jedi são decalques espaciais desses espadachins, fato facilmente identificável pela vestimenta semelhante a um quimono e pelo sabre de luz que faz às vezes de katana. Jon Favreau, o idealizador de The Mandalorian, retoma essa ligação umbilical em diversos sentidos, não somente no que tange à analogia ao bushidô. O elo estabelecido entre o mercenário e a Criança (comumente chamada na internet de Baby Yoda, principalmente por ser da mesma raça do mestre Jedi) é visual e afetivamente bastante parecida com a basilar de Lobo Solitário, mangá criado por Kazuo Koike e Goseki Kojima, considerada uma das HQs japonesas mais importantes de todas. A inspiração é claríssima.

No capítulo Santuário aparece outra ponte escancarada com a terra do sol nascente, desta vez com o clássico Os Sete Samurais (1954), de Akira Kurosawa. Mando e a rebelde Cara Dune (Gina Carano) são contratados por camponeses para proteger uma pacata vila da ameaça de saqueadores, exatamente como acontece no clássico acessado em outras ocasiões – Sete Homens e um Destino (1960), por exemplo, é um remake que transpõe essa trama para o Velho Oeste. Aliás, ainda no campo das influências e da apropriação canônica, The Mandalorian bebe na fonte do western, com o protagonista sendo em parte uma cópia de carbono dos pistoleiros enigmáticos que vagavam pelas cidades em busca de ocupações garantidoras de sua subsistência. Jon Favreau, no entanto, não sem contenta em oferecer piscadelas aos fãs desses gêneros e modelos, pois os utiliza de maneira engenhosa para criar um conjunto repleto de personalidade em meio às tais reverências.

Mando precisa, a todo custo, proteger a Criança das garras dos remanescentes imperiais que desejam apropriar-se de seu poder. Sim, pois o tal Baby Yoda, criaturinha para lá de carismática, mostra em alguns momentos-chave que, apesar da pouca estatura e do fenótipo infantil, possui o controle da Força. Favreau desenha com inteligência esse distúrbio ainda ocasionado pelos fanáticos imperiais em meio à jornada de aventuras do mandaloriano de passado demarcado pela tragédia. Gradativamente, fica clara a relação que o protagonista estabelece com o protegido, uma vez que ambos são órfãos deixados à própria sorte, mas que sobrevivem pelo amparo encontrado em figuras paternas substitutas. Os personagens coadjuvantes são bem delineados e alguns desempenham função ambígua. Os ótimos dróides fazem jus à tradição de Star Wars.

The Mandalorian ainda oferece arcos na medida para, não apenas satisfazer os fãs do universo criado por George Lucas, mas igualmente a fim de estabelecer pontes com nosso imaginário cinéfilo a partir do aproveitamento de vários modelos narrativos consagrados. No episódio O Prisioneiro, por exemplo, há o belo aceno ao filme de assalto, uma construção em torno daquelas clássicas equipes de especialistas, cada membro com uma habilidade específica, montada a fim de executar uma tarefa que parece simplesmente impossível. Um dos grandes méritos de Jon Favreau como showrunner é se valer dessas estruturas sem o efeito colateral do gosto rançoso de comida requentada. Mando e a Criança formam uma dupla cativante nessa série grande parte exitosa por transbordar admiração, mas sem para isso deixar de ser propositiva. Nesse faroeste espacial com toques de Japão feudal, o pistoleiro e o samurai se condensam no sujeito que não pode mostrar seu rosto.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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