Crítica


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Sinopse

Inventor brilhante e idealista radical, Allie Fox foge dos Estados Unidos com a família para as selvas mexicanas em meio a um estado de paranoia. Supostamente eles estão se livrando da perseguição do governo dos EUA.

Crítica

A família Fox precisa de um lugar para chamar de seu. Na primeira temporada de The Mosquito Coast, série baseada no livro de Paul Theroux, o espectador passa a maior parte dos sete episódios acompanhando a fuga desenfreada de Allie e Margot, junto dos filhos Dina e Charlie. Eles abandonam casa e atividades (trabalho, escola) assim que percebem que agentes do governo estão se aproximando deles. E, como logo fica claro, essa não é a primeira vez que partem esse tipo de movimento. Das duas questões mais pertinentes – por que fogem e para onde vão – uma mais ou menos já se tinha ideia: afinal, o filme A Costa do Mosquito (1986), também uma adaptação da mesma obra literária, tinha sua ação ambientada em um momento posterior a esse visto na série e, portanto, servia como resposta para o que acabaria acontecendo aos personagens. Porém, quanto à origem de tudo, o mistério permanece. Ou não, pois a segunda temporada encara essa dúvida de imediato, e trata de resolver qualquer segredo logo no primeiro episódio. Se muitos acreditavam que o motivo era algo que o marido teria feito, enquanto que outros tantos foram levados a pensar que as razões poderiam ter sido fornecidas por atos da esposa, os realizadores apostam em um meio termo: nem muito corajoso, mas também longe de ser insatisfatório.

Há duas dinâmicas fortes – e, por diversas vezes, contraditórias – no centro da narrativa de The Mosquito Coast. A primeira diz respeito à relação marital entre Allie (Justin Theroux, não por acaso sobrinho do autor da obra original no qual o programa é inspirado) e Margot (Melissa George, atriz australiana que chegou a ameaçar um ou outro momento de maior estrelato em Hollywood ao longo de uma carreira de mais de duas décadas, mas que aqui tem uma das suas melhores – e raras – oportunidades como protagonista). Os dois estão o tempo todo como que andando sobre uma fina camada de gelo, prestes a rachar sem aviso prévio. A rapidez com que entram em sintonia diante da necessidade de partirem no começo da temporada anterior imediatamente transmite ao espectador a ideia de que o casal age em comum acordo. Porém, aos poucos rusgas e desentendimentos permitem transparecer uma outra noção, a de que talvez nem tudo esteja em alta com eles, por mais de uma ocasião mostrando vontades opostas, para não dizer enfrentamentos tensos. Estariam, portanto, juntos por um motivo em comum, ou seria o contrário, essa causa única é que os teria forçado em tal união?

No outro lado da questão estão os filhos do casal, interpretados pelos jovens Logan Polish (como Dina, em seu primeiro trabalho de maior destaque) e Gabriel Bateman (Charlie, que, apesar da pouca idade, tem mantido presença constante no cinema e na televisão, participando de projetos como a mais recente versão de Brinquedo Assassino, 2019, ou em um episódio da popular Grey’s Anatomy, 2014, por exemplo). Enquanto o caçula tem uma adoração quase cega pelos pais, o que exige dele mais tempo até começar a perceber que há algo errado naquele entorno familiar, para a garota esse processo de fim da alienação se dá mais rápido. Se no final da primeira temporada Charlie, em um momento impensado, assassina um homem que os perseguida, obrigando-o a amadurecer prematuramente pela consequência do seu ato, agora ele precisará refletir sobre o que fez e como todos ao seu redor irão lidar com os efeitos disso. Assim, abre-se espaço para um maior protagonismo de Dina, que não só parte para um confronto direto tanto contra o pai, como também frente à mãe.

O resultado disso será prático: a menina está cansada, e anseia por uma vida mais próxima do normal possível. Isso levará não apenas a um acerto de contas com todas as mentiras contadas pela mãe ao longo das suas quase duas décadas de vida, como também a um enfrentamento às diretrizes paternas: manter a família unida acima de tudo. Ao contrário da primeira temporada, na qual os personagens principais se mantiveram em constante movimento, agora eles encontram uma base, uma reserva às escondidas no coração da América Central com outros refugiados assim como eles. Isso se dá já a partir do segundo episódio, uma vez que o capítulo de estreia é utilizado quase que por completo com flashbacks que justifiquem não apenas a necessidade da fuga, mas, também, os motivos de cada um desses dois adultos que os levaram a essa condição. Já separados, quando Charlie era apenas um bebê, tanto o pai quanto a mãe se envolveram em atos antidemocráticos de terrorismo, com maior ou menor nível de resultados drásticos. Cada um a seu modo carrega sua parcela de culpa, e a solução, até para buscarem uma forma de redenção particular, foi não apenas voltarem a se unir, mas também partirem em busca de algum tipo de conforto e segurança além dos motivos que os levaram a essa condição.

São os filhos carregando as culpas dos pais, portanto. Tanto Charlie quanto Dina nada tem a dever à sociedade – ou, ao menos, não tinham – e estão dispostos, também em diferentes níveis de comprometimento, a buscar o que lhes é devido por direito. Dina será mais bem sucedida e, após um envolvimento romântico de ocasião, acabará encontrando a brecha necessária para abandonar seus parentes. Mas quão longe conseguirá ir, sozinha, sem recursos e sem destino? Enquanto lida com essas questões particulares, em um âmbito maior os Fox se verão tendo que lidar com o retorno ao ativismo ambiental guerrilheiro. A exploração de terras indígenas, o avanço do setor imobiliário e a transformação de áreas de preservação em condomínios e resorts de luxo entram na mira dos dois que, mais uma vez, irão lidar com essas novas demandas cada um a seu jeito. É uma abordagem um tanto ingênua, quase inocente em um discurso naturalista de Partido Verde frente à negociatas feitas por debaixo do pano e ameaças de máfias institucionalizadas. Nesse contexto, a mudança de lado do matador profissional vivido por Ian Hart (Harry Potter e a Pedra Filosofal, 2001) ganha um peso bastante simbólico.

É curioso perceber que, mesmo após duas temporadas, a série The Mosquito Coast ainda não chegou ao ponto visto no filme A Costa do Mosquito. Ainda assim, o programa consegue se manter fiel ao espírito de investigar essa organização familiar, assumindo a coragem até mesmo para propor um desfecho diferente daquele imaginado. Além disso, também é investigado como se dão as relações entre eles, com filhos agindo de forma mais adulta e prática dos que os pais, perdidos entre culpas não assumidas e planos mirabolantes para salvar o mundo que pouco retorno oferecem aos seus problemas do dia a dia. Justin Theroux e Melissa George, que haviam trabalhado juntos pelas primeira vez em Cidade dos Sonhos (2001) – ou seja, no começo de suas carreiras – esbanjam química tanto no que os aproxima, como também por tudo aquilo em discussão que os afasta, e esse jogo estabelecido entre os quatro é o maior mérito da produção. Uma história que diz mais a partir do que discute e permite refletir a respeito, do que, efetivamente, pela ação discorrida na tela.

O Papo de Cinema agradece à AppleTV+ que disponibilizou antecipadamente à nossa equipe os dez episódios da nova temporada de The Mosquito Coast

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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