Crítica


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Sinopse

Um grupo de mulheres vitorianas forma uma gangue, que fica conhecida como “The Touched”. Elas possuem habilidades incomuns, desafiam perigosos inimigos e se arriscam em uma missão cujo principal objetivo é salvar o mundo.

Crítica

Um dos maiores desafios enfrentados pelos criadores e roteiristas de histórias de super-heróis é como estabelecer identificação com o espectador. Afinal, tratam-se de narrativas que envolvem personagens com poderes especiais, sobre-humanos, o que os tornam diferentes dos demais como condição primária de suas existências. Mesmo assim, os esforços nesse sentido se repetem e se alternam, seja por uma condição socioeconômica (a eterna pindaíba do Homem-Aranha), uma relação familiar (como a percebida no Quarteto Fantástico) ou mesmo por questões contemporâneas, como feminismo (Mulher-Maravilha, Capitã Marvel) ou negritude (Pantera Negra). Entre os caminhos possíveis, um de efeito certeiro é a descoberta dessas habilidades, ainda mais quando essas se manifestam, na ficção, de forma inesperada e naturalista, como se tal fenômeno estivesse mais perto da audiência do que se poderia imaginar. É o caso dos mutantes da Marvel – os X-Men – ou naqueles afetados por uma chuva cósmica, como os que estão no centro da ação de The Nevers, série que estreou rodeada de expectativas, mas chegou ao término de sua primeira temporada com mais dúvidas do que respostas.

Mas, além do tema que aborda, o que despertou curiosidade a respeito desse projeto foi o nome responsável pela empreitada: Joss Whedon. Exatamente o diretor de dois dos longas de maior sucesso do Universo Cinematográfico Marvel (Os Vingadores, 2012, e Vingadores: Era de Ultron, 2015), que comandou a versão catastrófica de Liga da Justiça (2017) que chegou aos cinemas após a saída de Zack Snyder, e que na telinha se envolveu com produções como Buffy: A Caça-Vampiros (1996-2003) e Agents of S.H.I.E.L.D. (2013). The Nevers é, portanto, sua volta ao meio no qual deu início à carreira, combinando elementos que se tornaram familiares ao cineasta no decorrer de sua filmografia. A maior diferença por aqui, no entanto, está no período histórico retratado: a ambientação se dá em plena Londres vitoriana, há mais de um século, quando modernidades tecnológicas inexistiam e costumes e tradições viviam em conflito. É nesse cenário que duas mulheres começam a fazer diferença.

Sim, pois após uma nuvem misteriosa surgir aparentemente do nada sobre toda a cidade, cada um dos que foram afetados pelas gotas dela desprendidas reagiu de modo distinto, dando vazão às mais diversas habilidades especiais. Da garota que se tornou gigante à que consegue se comunicar pelo uso de inúmeras línguas e dialetos, outras se revelam prontas para uma guerra eminente, descobrindo em si capacidades insuspeitas para lutas corporais, mãos que incendeiam a si e a tudo ao seu redor ou mesmo o potencial de falar com pássaros ou outros animais. Enquanto Penance (Ann Skelly, de Vikings, 2018-2019) tenta lidar com uma criatividade quase incontrolável inventando dispositivos que auxiliam em suas obrigações, a líder do grupo que formam é mesmo Amalia (Laura Donnelly, de Tolkien, 2019), a visionária que tanto esconde um passado do qual não pretende voltar, como também sabe que cada um dos seus atos irá lhe conduzir a um destino que talvez fosse melhor evitar. Ainda que involuntariamente, ela se torna representante de uma nova classe de cidadãos, e esse é um debate que tal sociedade não conseguirá ignorar por muito tempo.

A despeito das maravilhas que tais figuras são capazes de realizar, The Nevers opta por se focar na trama misteriosa que carrega. Não é tanto o que podem fazer, mas como lidam com essas novas responsabilidades que está em questão. Principalmente a partir do momento em que muitos desses seres abençoados (ou seriam amaldiçoados?) começam a ser perseguidos e até mesmo assassinados, tanto por parte da população – abrindo uma discussão sobre preconceito e respeito às diferenças – como por figuras misteriosas que passam a usar os capturados como fonte de estudo e pesquisa. Se no início querem entender como tais manifestações foram possíveis, logo se tornam cobaias de experimentos e outras agressões que visam a duplicação destes dons, independente do preço a ser exigido. Numa realidade que revela imensas limitações ao lidar com aquilo que foge aos padrões pré-estabelecidos, o debate é tão propício quanto urgente.

Mas se os desenlaces entre os personagens, na maior parte do tempo, se ocupam em seguir um comportamento não muito surpreendente, o interessante do programa é mesmo observar tais figuras e como se deram suas construções. Tipos como o playboy Hugo Swan (James Norton, transbordando carisma) ou Declan Orrun (Nick Frost, fazendo com eficiência uso do porte físico e do peso de sua participação, que mesmo sendo mínima é capaz de provocar fortes consequências) merecem atenção especial, tanto pelo que de inovador propõem como pelos anseios pouco convencionais que abraçam. Indo em caminho contrário, a rigidez de Lady Bidlow (Olivia Williams, mais uma vez subaproveitada) ou a obstinação do doutor Hague (Denis O’Hare rouba a cena a cada aparição sem muito esforço) oferecem bons contrapontos ao que se desenrola na superfície da história, possibilitando leituras paralelas que, ainda que se alinhem a um conjunto único, permitem que o todo se eleve do lugar comum com eficiência e comprometimento.

Mesmo com apenas seis episódios nessa primeira temporada – que pode ser vista também como a metade de um ano inaugural – The Nevers consegue oferecer capítulos de potencial, como o no qual opta por se debruçar no histórico de Amalia, revelando tanto suas origens como também suas reais motivações, e, principalmente, no último, chamado apenas de ‘True’ (ou, numa tradução direta, ‘verdade’). O mais inesperado de todos os segmentos oferece um sopro de espanto e inquietação ao ousar ir além do trivial e, mesmo diante de momentos derradeiros, seguir em busca de algo de inesperado. Por mais que esse ponto de adeus (ou seria ‘até logo’?) tenha deixado muita gente incomodada – em ambos os lado da tela – e provocado um desconforto pelo confronto com a cartilha habitual, é justamente por esse ímpeto em deixar um zona de conforto e assumir certos riscos que a série mostra valor, indicando ter mais a desvendar, sem recair sobre o que foi visto até o momento. Se tal espírito aventureiro será confirmado ou não permanece uma incógnita, mas uma instigante o suficiente para justificar o interesse que assim se renova.

 

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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