Crítica


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Sinopse

Quatro garotas de 18 anos acabam de entrar para a Essex College, em Vermont. Enquanto dividem um dormitório e enfrentam as pressões por desempenho acadêmico, começam a explorar suas vidas sexuais e afetivas.

Crítica

Na época em que foi criado, o quarteto de Sex and the City (1998-2004) parecia subversivo aos padrões da televisão norte-americana: quatro mulheres discutiam abertamente sua sexualidade numa cidade plural, onde poderiam se relacionar com quantos homens desejassem. Olhando em retrospecto, o caráter de afronta desta iniciativa soa tímido: tratava-se de quatro mulheres ricas, brancas e heterossexuais, dispostas de gastar uma fortuna em sapatos de grife num retrato do empoderamento por meio do consumo. Após tantas experiências, elas se voltavam quase exclusivamente ao amor romântico, enquanto a única personagem realmente libertária, Samantha, foi punida pelos roteiristas com um câncer ao final da história. Este retrato deixou um gosto amargo no que diz respeito à representação da sexualidade feminina. Agora, um projeto vai muito mais longe: The Sex Lives of College Girls (2021), comédia criada por Mindy Kaling. A atriz e roteirista compreende que as experiências só poderão ser realmente diferentes a partir do momento em que as personagens também o forem. Por isso, o novo quarteto é formado por meninas de classes sociais bem distintas, sendo duas estudantes brancas, uma negra, e outra indiana. Três são heterossexuais, e uma é lésbica, ao lado de uma galeria de coadjuvantes que inclui jovens deficientes, não-binárias, rapazes abertamente gays e outras configurações identitárias. 

Não existe uma Carrie, a figura centralizadora que equilibra os “excessos" das colegas (o puritanismo de Charlotte, a libertinagem de Samantha): elas convivem lado a lado, sem hierarquia em termos de ponto de vista. Os dez episódios da primeira temporada criam uma proximidade física (elas dividem o dormitório na Universidade Essex), mas também afetiva entre as garotas que se repudiam, a princípio, devido às diferenças sociais. Enquanto isso, rompem com expectativas e estereótipos: Bela (Amrit Kaur), jovem humorista indiana representando um alter-ego da criadora, fala sobre sexo o tempo inteiro, mas jamais mantém nenhum relacionamento intenso com os homens que deseja. Pelo contrário, resta à tímida Kimberly (Pauline Chalamet) descobrir prazer com os garotos pelo campus. Whitney (Alya Chanelle Scott), atleta com espírito de liderança, revela um lado tímido, enquanto a assertiva Leighton (Renée Rapp), cuja força se traduz em arrogância, mostra-se insegura quanto ao julgamento alheio. Em especial, nenhuma delas se resume a uma única característica principal: as universitárias ganham a oportunidade de navegar por uma jornada dosada de alegrias e dramas, entre festas divertidas e instantes de abuso sexual.

Por trás dos ótimos diálogos cômicos, que evitam insistir em piadas, reside um tratamento acolhedor. The Sex Lives of College Girls demonstra tamanha empatia pelas protagonistas que prefere poupá-las de sanções externas por seus erros, deixando que as dores sejam apenas internas, na forma de culpa ou remorso. Isso significa que a presença do assediador será rapidamente solucionada; o comportamento inadequado do treinador sofrerá punições adequadas; as ilegalidades praticadas pela aluna em dificuldade escolar recebem um reparo rápido. O mundo dos adultos e das instituições tende a perdoar com facilidade os deslizes cometidos pelas garotas, por compreenderem que estas ações fazem parte de um caminho de aprendizado. O texto evita torturá-las pelas escolhas ruins, em espírito moralista: elas nunca se tornarão “pessoas melhores” após os percalços. Em paralelo, tampouco se restringem à posição de meras vítimas, sobretudo em se tratando da delicada representação de abuso contra Bela. Elas assumem os traumas sofridos e os erros cometidos, encaram de cabeça erguida as possíveis represálias e seguem em frente. A maioria das séries dedicaria uma temporada inteira para lidar com a homossexualidade reprimida ou o caso amoroso envolvendo o treinador. Aqui, elas adquirem a oportunidade de superação, evitando o fetiche do sofrimento alheio.

A interação entre o quarteto funciona devido a uma série de escolhas de roteiro, direção e elenco. Primeiro, nenhum coadjuvante existe para os protagonistas, limitando-se a dar a réplica às figuras centrais. O texto garante que todos tenham vida própria, sejam os funcionários da lanchonete, as participantes do núcleo feminista, as jogadoras de futebol e os membros do jornal cômico. Ou seja, conforme Bela, Leighton, Whitney e Kimberly traçam seus caminhos pelos estudos, os colegas e conhecidos possuem seus conflitos pessoais. Segundo, a direção e a montagem equilibram com naturalidade as subtramas, sem isolá-las em quatro histórias diferentes (caso das últimas temporadas de Desperate Housewives), nem exigir que as quatro estejam reunidas para a trama avançar. Existe um movimento dinâmico que vai da sala de aula aos alojamentos, restaurantes e fraternidades, onde as personagens se cruzam e expõem os confrontos. Terceiro, o elenco desenvolve uma interação excelente, graças à direção de atores e às habilidades dramáticas e cômicas das atrizes de experiência limitada em filmes e séries. Os laços internos se reconfiguram, as afinidades se transformam, rumo à improvável aliança final entre Kimberly e Leighton.

Por fim, A Vida Sexual das Universitárias (na tradução brasileira) filia-se a novas tentativas plurais de compreender sexualidade feminina, similar a Sex Education (2019 -), ao invés da romantização moralista dos projetos iniciados nos anos 1990. Os personagens da série da HBO Max possuem maneiras distintas de lidar com seus corpos e a libido, sendo acolhidos quando exploram novos caminhos, e rapidamente rechaçados quanto recorrem ao abuso de poder (caso de Dalton) e abuso sexual (caso de Ryan). Trata-se de uma iniciativa política que nunca precisa gritar suas intenções, transmitidas com naturalidade entre festas, flertes e provocações amigáveis no quarto. Mindy Kaling permite fazer humor com as meninas lésbicas, deficientes e não-binárias, sem ridicularizá-las. A todos os conservadores, gritando pelas redes sociais que “não se pode fazer piada com nada hoje em dia”, fica a sugestão para assistirem a este humor sofisticado, onde a juventude se torna motor e alvo de risadas, de maneira respeitosa. Em paralelo, estabelece um claro ponto de vista em defesa das minorias contra o sistema que poda a liberdade feminina e condiciona o comportamento masculino. Longe de qualquer ingenuidade, o texto comprova a capacidade de rir do caráter absurdo das relações sociais, ao invés dos indivíduos afetados por elas.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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