Crítica


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Sinopse

Um cômico de stand-up incorpora em suas apresentações detalhes das pessoas que ele conhece, sem saber que toda piada contada no palco resulta em alguém apagado da existência.

Crítica

Na lenda alemã, Fausto vende sua alma ao diabo para nunca envelhecer, no entanto, a escolha hedonista o leva ao inferno. Em "O Retrato de Dorian Gray", o belo protagonista também vende sua alma preservar a beleza, sendo sacrificado por isso. Na mitologia grega, Ícaro tenta fugir de Creta voando, mas por ser ambicioso demais, chega perto do sol e tem suas asas queimadas. Existem dezenas de fábulas a respeito da ambição e a vaidade corrompendo as pessoas e levando-as à ruína. Para o episódio de abertura do novo Além da Imaginação, o criador Jordan Peele imagina uma releitura deste pressuposto dentro do mundo da comédia stand-up. Samir (Kumail Nanjiani), comediante fracassado, trava um acordo com seu ídolo lendário para obter a fama. Como moeda de troca, precisa sacrificar as pessoas que conhece.

Embora a premissa não possua nenhum elemento propriamente novo, e a moral punitiva se apresente ao final como esperado, “The Comedian” interessa acima de tudo por aplicar o mecanismo perverso à ontologia da arte. É normal que um artista utilize a vida de pessoas ao redor para construir sua ficção, assim como se compreende quando um comediante se inspira em histórias reais para produzir humor. Mas qual seria o limite ético desta apreensão? O roteiro imagina um contexto em que a arte literalmente rouba seu referente, se substitui a ele, tal qual o quadro de Oscar Wilde. Quando Samir cita uma pessoa em suas piadas, ela deixa de existir. Ele não apenas rouba a vida da pessoa figurativamente, mas literalmente. Embora se sinta um assassino, o mentor/diabo o tranquiliza: “Você não pode matar alguém que nunca existiu”. A premissa brinca de maneira bastante inteligente com a relação entre a representação e seu referente.

Na busca por metáforas visuais e cinematográficas para sua fantasia, The Twilight Zone oferece símbolos como os vampiros (“Vocês querem sangue fresco?”, o protagonista pergunta ao público) e mesmo O Iluminado (1980), referência explícita para a cena final. O texto está tão marcado por símbolos e acenos à cultura pop-literária-mitológica que o resultado soa um tanto previsível, ainda que bem construído. O piloto também se vê bastante preso à estrutura que garantiu o sucesso da série de 1959, incluindo a estética de sonho/pesadelo (as imagens filmadas em lente grande-angular, os fundos desfocados, as luzes teatrais invadindo o apartamento) e a presença do narrador, no caso, o próprio Jordan Peele, dirigindo-se ao espectador e explicando a moral da história. Nos anos 1950, quando este formato era bastante inovador, talvez a explicação fosse necessária. Em pleno século XXI, a mediação convencional resulta num gesto redundante.

Ao menos, devido à presença de Peele (Corra!, 2017, e Nós, 2019), percebe-se a mistura ácida de humor e crítica social, incluindo personagens indianos e negros em posições de destaque, além de encontrar metáforas interessantes para discutir a desigualdade social nos Estados Unidos. Afinal, fazer com que um garotinho negro desapareça, ou ainda desaparecer com estupradores e homens de negócio arrogantes (todos estes brancos) não constitui o mesmo valor na trama, algo que o piloto da série trabalha muito bem. Nanjiani, ator comedido nos trejeitos e confortável com sua dicção particular, empresta a expressão do “loser” e do imigrante para potencializar a ironia deste American Dream. Talvez “The Comedian” se aproxime da obviedade em suas mensagens, mas ele jamais se torna inocente, conseguindo oferecer um sarcasmo sombrio. Os criadores aproveitam de modo eficaz o imenso potencial crítico existente na união entre comédia, terror e ficção científica.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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