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Sinopse

Um professor de antropologia é surpreendido pela morte violenta do pai. Entre os objetos herdados por ele se encontra uma estranha arma com o símbolo de um escorpião azul. Enquanto busca o sentido do revólver na vida do pai, começa a se apegar cada vez mais aos estranhos poderes da arma.

Crítica

Chegando à reta final de sua primeira temporada, The Twilight Zone demonstra episódios de qualidade variada, apesar de apresentar uma coerência temática em torno da psicologia dos personagens. A série parte do terror e da fantasia para dialogar com o estado de espírito de homens e mulheres paranoicos. Cada protagonista atravessa um estado de crise que se confunde com loucura, de modo que a narrativa unificada aponta para uma espécie de alucinação coletiva, uma mistura entre sonho e pesadelo. As figuras fictícias criadas por Jordan Peele e Simon Kinberg debatem o medo do terrorismo (Nightmare at 30.000 Feet), da violência policial (Replay), dos imigrantes e da xenofobia (A Traveler, Point of Origin), do estupro (Not All Men), do totalitarismo (The Wunderkind), da morte (Six Degrees of Freedom) e da exposição ao ridículo (The Comedian). The Blue Scorpion adiciona-se à galeria de fobias ao trazer o medo da emasculação, ou ainda da violência provocada por armas.

Na trama, Jeff Storck (Chris O’Dowd) herda o revólver utilizado no suicídio do pai idoso. Devido ao trauma relacionado ao objeto, decide se livrar logo dele, apenas para perceber estranhos poderes ao segurar a arma dourada, com o símbolo de um escorpião azul. De repente, o mundo parece feito para ele: todos os homens com que cruza na rua se chamam Jeff, as balas do revólver têm o nome de Jeff gravado, e ele começa a ser perseguido por figuras indesejadas em busca do precioso revólver. O protagonista combina delírio de grandeza e mania de perseguição: ele acredita se encontrar num universo onde tudo orbita em torno dele: a esposa o troca por outro homem de nome Jeff, a orientanda em antropologia pesquisa justamente o antropomorfismo, ou seja, a atribuição de características humanas a objetos inanimados, e a própria arma parece protegê-lo, agindo sozinha quando ele precisa de socorro. O mérito destes estranhos episódios consiste em transformar uma sensação íntima (o fato de ser perseguido, de perceber poderes na arma) numa representação realista: de repente, o mundo literalmente o persegue, a arma realmente dispara quando deseja. Enxergamos o mundo pelos olhos de uma pessoa perturbada, num convite à imersão neste estado psíquico.

Ao final, o narrador interpretado por Jordan Peele discorre sobre a moral da história: “As armas são mais valorizadas do que a vida”, ele alerta. Talvez a mensagem, de fato, gire em torno da obsessão bastante norte-americana – e cada vez mais brasileira – pela posse de armas em nome da autoproteção e, sobretudo, de um ideal de masculinidade e paternalismo vigentes em sociedades conservadoras. Apesar da paranoia, Jeff consegue encaminhar sua história de amor pelo revólver dourado a um curioso final feliz, onde os conflitos se arranjam graças ao objeto poderoso. Pode-se perceber uma ironia neste homem empoderado pelo objeto precioso, no entanto, seria igualmente possível ler esta trajetória bélica como algo positivo para ele. As cenas com Jeff atirando trazem a empolgação da câmera lenta, dos efeitos sonoros elaborados, das expressões de prazer no rosto de Chris O’Dowd. Uma estranha mensagem encontrada junto do revólver permite pensar que objeto não apenas esteja associado ao pai morto, mas que o represente, que o substitua. A humanização da arma funciona beneficamente para Jeff, que passa a ser literalmente protegido por este pai-revólver. Em outras palavras, o discurso de The Blue Scorpion navega de forma ambígua entre a crítica social e o conformismo diante da paixão americana por armas.

O diretor inclusive permite que o objeto interfira na edição de som: cada peça montada e desmontada (o cartucho inserido ou retirado, por exemplo) traz um aumento ou diminuição do volume da trilha sonora, ao passo que os planos próximos, de profundidade de campo reduzida, filmam o objeto como um retrato humano. O episódio está ciente de seu antropomorfismo, explicitado em diálogos, mas talvez não demonstre com tanta clareza o distanciamento em relação ao mesmo. A fotografia preciosista de Mathias Herndl, que também comanda os demais segmentos de The Twilight Zone, soa contraproducente neste caso particular por realmente transformar o objeto em algo empolgante aos olhos do espectador – ao contrário da monstruosidade dos meteoritos de Not All Men ou do inferno vivido pela dona de casa de Point of Origin. Nestes casos, havia clara aversão ao objeto e/ou cenário bizarro e perigoso. No nono episódio da primeira temporada, o medo se mistura com prazer, transformando-se em fetiche. O texto ainda funciona bem enquanto metáfora do conservadorismo social e dos aspectos nocivos da masculinidade, mas na conclusão, poderia (ou deveria) ser muito mais assertivo em seu posicionamento em relação ao revólver, verdadeiro protagonista da trama.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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