Crítica


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Sinopse

A escritora Sophie Gelson está preparando o roteiro do episódio final de The Twilight Zone. Ela enfrenta uma crise criativa, enquanto os produtores a pressionam pela conclusão do trabalho. Enquanto busca a inspiração, começa a perceber que todos os episódios até então foram atravessados por um estranho vulto preto. Para se confrontar aos poderes do "homem borrado", Sophie precisará fazer as pazes com seus traumas de infância.

Crítica

Blurryman parte de um falso início – ou talvez sejam dois falsos inícios. Na cena de abertura, um escritor em crise (Seth Rogen, interpretando o homem fracassado pela enésima vez) conversa consigo mesmo, em voz alta, sobre a dificuldade de começar sua história. Este recurso soa artificial, porém o efeito é voluntário: trata-se de um personagem fictício-dentro-da-ficção, ou seja, ele interpreta um ator de The Twilight Zone filmando um dos episódios da temporada. Quando abre a janela de seu quarto-estúdio, o roteirista fictício percebe que o apocalipse imaginado por ele está acontecendo de fato pelas ruas da cidade. A habilidade de moldar o real a partir de sua imaginação o aproxima do humorista de The Comedian, protagonista do primeiro episódio. O retorno às figuras de storytellers dotados de poder divino constituiria uma forma de amarrar todos os dez segmentos da primeira temporada? Estaríamos diante de uma jornada cíclica encerrando-se onde iniciou? Não exatamente.

Logo descobrimos que nem o escritor, nem o apocalipse constituem o foco da trama. A personagem principal é Sophie (Zazie Beetz), uma roteirista fictícia de The Twilight Zone, confrontada à própria pane criativa. Soa confuso? O roteiro faz questão de atingir diversos graus de metalinguagem. A série se assume como série, os bastidores se revelam enquanto tais, Jordan Peele interrompe o papel sombrio de narrador para se transformar no amigo brincalhão da equipe – o que não deixa de representar, é claro, uma versão fictícia de si mesmo. O projeto toma distanciamento para efetuar dois processos importantes dentro de um único segmento: 1. Situar todas as histórias da temporada no mesmo universo, encontrando um elemento secreto que atravesse as narrativas, e 2. Fazer uma citação explícita à série original, de 1959, com Rod Serling no papel do apresentador que desvenda significados ao término de cada conto moral. O projeto de 2019 se vê na obrigação de acertar contas com o passado, tanto reverenciando a série que lhe deu origem como reavaliando a si próprio, ao mesmo tempo em que cria uma história autônoma dentro dos moldes de suspense fantástico que ditaram os rumos até então - tudo isso em menos de 40 minutos.

Devido a tamanha responsabilidade autoimposta, Blurryman transforma-se facilmente no capítulo mais ambicioso, e também mais pretensioso de todos. Simon Kinberg, produtor da saga X-Men, toma a direção para si, buscando refletir sobre o cinema, sobre a ficção e sobre nossos traumas pessoais, tudo de uma só vez. Ele passa do colorido ao preto e branco, do drama ao terror, do dilema da roteirista em crise ao dilema da mulher perseguida pelos traumas de infância, da aparição de um ser sobrenatural – o homem borrado do título original – a uma ameaça com superpoderes, que finalmente revelará a sua identidade. São transformações em excesso, numa narrativa ciente demais de sua malícia e inteligência. A descoberta de um bar criado apenas para a chegada de Sophie remete a O Iluminado (1980), enquanto a figura do Blurryman poderia remeter a diversos monstros clássicos de cinema expressionista e de terror. Com esta conclusão, a saga pretende ao mesmo tempo se encerrar sobre si mesma e se abrir a novas possibilidades narrativas, incluindo o metaterror, o cinema que questiona seu dispositivo. Se o espectador possui consciência de que algo é fictício, e portanto falso, por que a trama ainda desperta medo? Através de Sophie, o roteiro questiona a essência do cinema do pacto de suspensão da descrença estabelecido com o espectador.

Talvez o aspecto mais ambicioso ainda se encontre na construção psicológica da protagonista, que além de representar a figura paranoica e à beira da loucura, a exemplo dos personagens dos episódios anteriores, ainda carrega traumas de infância. A figura do vilão sem rosto dialoga diretamente com conflitos recalcados pela roteirista que, para fazer as pazes consigo mesma, será obrigada a enfrentar as trevas escondidas. A ideia de que cada pessoa possui um sofrimento reprimido possui interesse, e o mesmo poderia ser dito da representação do trauma por meio do vulto negro que atravessa toda a trajetória (de Sophie e da série), no fundo do quadro, em silêncio, até se tornar mais presente e, portanto, impossível de evitar. No entanto, os criadores de The Twilight Zone sugerem que a simples descoberta de um trauma bastaria para superá-lo, algo que contradiz as bases da psicanálise. Além disso, o roteiro encontra maneiras de surpreender o espectador em seu abismo metalinguístico, fazendo com que haja novas histórias dentro da história, como uma boneca russa. O episódio não necessariamente dá conta de todas as suas pretensões narrativas, estéticas e culturais, porém serve para esclarecer as prioridades da série: honrar o material de origem, refletir sobre o próprio audiovisual e sobre o mundo contemporâneo, enquanto confere protagonismo a mulheres negras e lésbicas (caso de Sophie), subrepresentadas no cinema e nas séries.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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