Crítica
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Sinopse
Crítica
A primeira temporada de The Wilds: Vidas Selvagens (2020 -) parte de uma estrutura funcional tanto para o suspense quanto para o drama de sobrevivência. Duas temporalidades correm em paralelo: no passado, vemos um grupo de adolescentes vítimas de um acidente de avião, encontrando refúgio numa ilha deserta. No presente, descobrimos as meninas a salvo, com os rostos machucados, o corpo ferido ou mutilado, diante de policiais. Cabe aos roteiristas unir estes dois pontos: como passamos da viagem de empoderamento feminino à investigação pelas autoridades? Devemos ficar aliviados porque as protagonistas foram resgatadas, ou apreensivos pelo estado em que foram encontradas? A criadora Sarah Streicher dribla a típicas expectativas do gênero ao sugerir que o retorno à terra não constitui o término do calvário. Afinal, os traumas acumulados durante o período de isolamento são profundos, e o teor dos interrogatórios sugere que ainda correm perigo. De que são acusadas? As incertezas se somam a cicatrizes que, conforme atesta cada episódio, as jovens já carregavam consigo.
Há um interesse particular em assistir à série durante um período de pandemia, quando o isolamento social se afrouxou, apesar de a taxa de contaminação por Covid-19 ter retomado índices preocupantes. As jovens presas a uma ilha, separadas dos familiares e temendo riscos de morte (por afogamento, ataques de animais, fome, sede e doenças), remetem à sociedade isolada para minimizar um risco externo. O conceito se torna ainda mais perturbador a partir do momento em que a convivência em sociedade representa a ruína da própria sociedade. Não por acaso, o grupo de sobreviventes inclui garotas de distintos estratos sociais: ricas e pobres; de famílias estruturadas ou não; heterossexuais e homossexuais; religiosas ou céticas; negras, brancas, asiáticas, indianas e indígenas. Percebemos que não foram presas por acaso, em vários sentidos do termo. Primeiro, porque há uma força maior controlando os acontecimentos na ilha, e segundo, porque o roteiro (um episódio para cada personagem, além de introdução e conclusão) estimula o embate entre as diferenças. O que ocorre quando progressistas e conservadores, privilegiados e desprivilegiados são confrontados a condições de vida idênticas?
Atenção: spoilers a seguir.
A narrativa se transforma bastante quando compreendemos que o desastre aéreo não constitui um acidente, mas a simulação proposta por uma psicóloga ambiciosa. The Wilds: Vidas Selvagens deixa de ser uma “história de sobrevivência” para se converter num debate ético e moral. A que ponto podemos manipular a vida alheia em nome do conhecimento humano, mesmo que a sobrevivência esteja garantida? Sabemos, pela montagem paralela, quem vive e quem morre ao final. Temos consciência de que um eventual falecimento na ilha seria de responsabilidade de Gretchen Klein (Rachel Griffiths) e sua equipe: algum desastre apenas aconteceria por negligência grave dos psicólogos, e eventualmente, por interesse deles. Transitamos entre o contexto incontrolável do acidente aéreo para o mundo inverso: um cenário artificial, repleto de câmeras, com direito a conflitos plantados e contidos na hora desejada. A distopia se assemelha a O Show de Truman (1998), Lost (2004 - 2010) e Westworld (2016 - ), no sentido de testar os limites da manipulação do homem pelo homem.
Algumas características do estudo de Klein impressionam pelo modo como refletem a posição do espectador de cinema. A psicóloga pode soar perversa por se deleitar com o sofrimento das meninas enquanto se encontra em posição de conforto. No entanto, por que o prazer fetichista desta mulher seria diferente do nosso, que também assistimos a quase dez horas de jogos de autodestruição? Nenhum personagem se converte em vítima do acaso: eles se colocam, ou colocam uns aos outros, em situação de quase-morte. A viagem é paga pelos pais, a ilha é controlada pelos cientistas sociais, as desaventuras amorosas são ativamente procuradas pelas garotas. Nesta série criada por mulheres, escrita por mulheres e majoritariamente dirigida por elas, além de estrelada por personagens femininas nas posições de comando (de Klein à bilionária que financia os estudos, das pobres sobreviventes às agentes infiltradas), as mulheres questionam a si próprias: caso o machismo fosse eliminado de alguma bolha social, o comportamento feminino abriria espaço a um novo modelo de organização, ou os setores femininos já introjetaram, por instinto de sobrevivência, o mecanismo nocivo da dominação masculina? Este questionamento, jamais aprofundado, porém presente do início ao final, constitui um importante ponto de reflexão.
Entretanto, as etapas do experimento sofrem com problemas de lógica e concessões generosas demais à fantasia. É difícil acreditar que uma organização deste porte ficaria sob os cuidados de somente três ou quatro pessoas, mantendo-se em segredo apesar da estrutura gigantesca. “Estou coletando dados”, afirma Klein repetidas vezes, sem explicar que descobertas revolucionárias teria possivelmente extraído da iniciativa. O comportamento dela e dos colegas, que jamais discutem entre si, não tomam notas nem comparam dados, soa pouco verossímil enquanto processo científico. Há dispositivos absurdos implementados na ilha, desde destroços de avião até câmeras escondidas. Como as jovens não teriam descoberto estes indícios após tantos dias de exploração da natureza? A maquiagem e os penteados se esforçam para ilustrar o desgaste físico, já a direção de arte fornece às personagens roupas limpas demais para jovens vivendo na precariedade. A ausência das famílias das protagonistas pós-resgate constitui outra facilidade difícil de justificar. Os conflitos menos realistas reforçam a condescendência da série com Klein, incapaz de justificar moralmente a martirização das garotas. Embora posicione Leah (Sarah Pidgeon) como protagonista, os episódios 7, 8 e 9 se esquecem da jovem durante tempo excessivo para se dedicarem a improváveis conflitos paralelos.
A necessidade de estar um passo à frente do espectador prejudica o potencial da série. Afinal, o cenário de fome, sede e solidão, provocado deliberadamente, constitui farto material de trabalho, sem a necessidade de acrescentar subtramas que o roteiro não tem tempo nem disposição de dissecar, a exemplo do suicídio, a violência sexual e a mutilação de uma personagem. Ao menos, Streicher desenvolve com eficiência pequenos símbolos: a prótese dentária de Shelby (Mia Healey), o manequim masculino, os cachorros de Gretchen substituindo o filho encarcerado. Caso outros elementos recebessem o mesmo cuidado (os salgadinhos encontrados na ilha, os celulares com bateria limitada, o cadáver de uma viajante), o efeito da trama seria ampliado. Feitas as devidas ressalvas, The Wilds: Vidas Selvagens possui notável ambição, tanto na fusão de gêneros (o drama adolescente, o suspense de sobrevivência, a distopia) quanto na descrição de oito perfis psicológicos complexos, representativos de um imaginário crítico dos Estados Unidos contemporâneos.
O elenco possui prestações desiguais, ainda que positivas em geral. Com a voz rouca e o corpo retraído, Sarah Pidgeon demonstra ampla variação de estados emocionais, desconstruindo a figura da jovem idealizada. Em geral, as protagonistas de coletivos femininos constituem uma síntese das coadjuvantes, porém Leah escapa a esta função. Rachel Griffiths possui inúmeros recursos dramáticos, apesar dos tiques de atuação traduzidos na insistente contração dos lábios. As cenas de fragilidade de Klein dissipam a aparência de megera próxima de Jeanine (Kate Winslet na saga Divergente) e Ava (Patricia Clarkson na saga Maze Runner). A série se posiciona um nível acima destes formatos adolescentes consagrados e esgotados pelo cinema comercial há cerca de uma década. Para cada atuação impressionante – a desenvoltura de Fatin (Sophia Ali) com diálogos, a vulnerabilidade de Shelby (Mia Healey), a força no olhar de Dot (Shannon Berry) – outras atuações soam repetitivas e limitadas – caso da timidez estereotipada de Nora (Helena Howard) e do otimismo infantilizado de Martha (Jenna Clause). Entre os investigadores, Dean (Troy Winbush) ganha um retrato mais humanizado do que o colega Daniel (David Sullivan). Ambos se beneficiariam com alguma cena fora do estudo, permitindo o aprofundamento de seus personagens.
A conclusão da primeira temporada se revela tão ambiciosa quanto frustrante. Seria compreensível que Streicher acrescentasse alguma proposta inédita na reta final, visando o eventual desenvolvimento na temporada seguinte. Em contrapartida, ela impede resoluções prometidas desde o início, acreditando no desejo do espectador em retornar à sequência para buscar respostas relacionadas ao início. Outras séries de estrutura semelhante (suspense em temporalidades paralelas e personagens femininas dominadoras), a exemplo de Lições de um Crime (2014 – 2020), descarrilharam a partir desta aposta. A cena final, de forte significado, consiste numa revelação prometida ao espectador há algum tempo. Em outras palavras, ao invés de promover novos embates relacionados à ilha e ao experimento científico, as criadoras preferem retornar à premissa original para extrair novas conclusões a partir de fatos idênticos. Neste aspecto se encontra o verdadeiro caráter científico da trama: ao contrário dos psicólogos conduzindo um estudo improvável de caráter espetacular, os investigadores somos nós, espectadores, destinados a observar os fatos de novo e de novo, até descobrirmos as respostas que perdemos à primeira vista.
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